(In)Segurança publica |
Combater as milícias, uma questão de soberania |
Finalmente, a sociedade e os parlamentares do Rio de Janeiro superaram a postura de condescendência e passaram a tratar os milicianos que praticam a violência em nome da “ordem” como o que eles realmente são: criminosos que aterrorizam as comunidades pobres, extorquindo dinheiro em troca de “proteção” |
por Marcelo Freixo |
O debate sobre as milícias finalmente foi colocado em pauta no Rio de Janeiro. A sociedade demorou a despertar para esse fenômeno que, quando surgiu, há cerca de oito anos, chegou a ser tratado com benevolência por algumas autoridades. A principal razão do crescimento das milícias dentro do Estado, com crescente força política nos Legislativos estadual e municipais, é justamente a postura condescendente adotada por muitos dos que deveriam combatê-las. Em uma defesa ideológica totalmente inadequada, alegou-se que as milícias representam um “mal menor” e que, diante da falta de policiamento e da precariedade da segurança pública, a ação desses grupos seria preferível ao poder dos narcotraficantes. No entanto, em 65% das comunidades que hoje estão sob o controle dos milicianos não havia antes atividade de tráfico de drogas. E, em locais onde as milícias são menores, ainda sem braços políticos e com maior limitação econômica, o mercado ilegal de entorpecentes continua a existir. Infelizmente, foi preciso que uma equipe do jornal O Dia fosse barbaramente torturada para que muitos reavaliassem seus pontos de vista e entendessem que esses grupos são mais um elo da corrente criminosa que subjuga a sociedade. Enquanto a violência e o terror recaíam apenas sobre os moradores das favelas, o que vimos foi silêncio e conivência do poder público e da grande imprensa. Finalmente, a proposta de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembléia Legislativa (Alerj) para investigar a ação das milícias – que havia sido apresentada há mais de um ano – foi aprovada e instalada em junho. Desde então, a comissão realizou 15 reuniões e tinha ouvido até o final de setembro 24 pessoas, entre policiais, promotores, indiciados, suspeitos de participação e acadêmicos estudiosos da crescente atuação desses grupos no Rio de Janeiro. Criado para dar sustentação à investigação, o Disque Milícia da Alerj já recebeu mais de mil denúncias. Um diagnóstico incontestável por todos os que se debruçam sobre esse tema é que a ação ilegal das milícias passa, prioritariamente, por três eixos: 1) controle de território exercido por agentes públicos vinculados à área de segurança; 2) extorsão direta dos moradores por meio do controle de diversos serviços; 3) formação de braços políticos nas comunidades onde as milícias são mais fortes, com parlamentares eleitos como resultado da construção dos redutos eleitorais nesses espaços. As leis estabelecidas em lugares onde o Estado – que deveria determinar as regras cotidianas das pessoas que ali vivem – se mostra ausente não são as que estão na Constituição ou que são votadas na Assembléia Legislativa. O “tribunal” que julga os conflitos ocorridos nesses espaços urbanos nada tem a ver com o Judiciário. Na mesma lógica, a presença de grupos armados ilegais faz com que o uso da força deixe de ser exclusividade do poder público. Isso vale tanto para as áreas dominadas pelas milícias quanto para aquelas em que facções criminosas controlam o varejo das drogas ilícitas. O mais grave é que esse complexo domínio de território envolve a vida de aproximadamente um terço da população da cidade do Rio de Janeiro, que fica muitas vezes sem ter a quem recorrer. E ainda que se assemelhem na questão do controle territorial, é fundamental destacar que milicianos e traficantes se diferenciam na relação que mantêm com a política. Observamos que nas áreas dominadas pelo tráfico de drogas inexiste a possibilidade do exercício de uma influência duradoura sobre os parlamentares. Os ditos traficantes são, quase sempre, jovens com baixíssima escolaridade, que sobrevivem na atividade criminosa um tempo inferior ao de um mandato político. Dentro da lógica do tráfico, prevalece a valorização do homem “fora-da-lei” – quanto mais à margem das instituições, maior é o respeito junto aos seus pares. São jovens que não querem fazer reuniões para debater projetos de lei, indicar diretores de escolas ou hospitais. No máximo, negociam o valor do “arrego” (propina) com a parcela corrupta da polícia. Isso não quer dizer que nas áreas de narcotráfico não existam currais eleitorais. Claro que existem. Em geral, nesses espaços, apenas os candidatos com autorização dos “donos” locais podem fazer campanha. Porém, isso não significa que, uma vez eleitos, vão agir como representantes dos interesses políticos dos traficantes. Essa juventude de fuzil na mão e morte na mente é desprovida de qualquer ideologia, incapaz de vislumbrar uma perspectiva de futuro. O único poder que possui e enxerga é local e imediato. A realidade das milícias é bem distinta. Seus membros são agentes públicos que afirmam seu poder alegando ser representantes da lei. Introjetam a figura do xerife, valorizando a ostentação da carteira funcional, do distintivo e da arma oficial. Mesmo em plena atividade criminosa, se apresentam como integrantes do Estado, tirando proveito de apelos morais como o fim das drogas, das badernas, dos assaltos e dos roubos. E, em troca dessa suposta tranqüilidade, impõem um preço. Vale destacar que as milícias também se diferenciam dos chamados grupos de extermínio, muito comuns na Baixada Fluminense. Esses bandos de assassinos chegam a manter ligações com a política, mas sua atuação é mais relacionada com o comércio local, por meio da venda de segurança. Já as milícias exercem seu domínio para extorquir dinheiro dos moradores. A idéia é: “Eu te protejo de mim mesmo”. Ou seja, o meio de persuasão é a capacidade de terror que a própria milícia é capaz de produzir. Quem não aceita é vítima da barbárie. O objetivo final dessas quadrilhas privadas é o lucro, obtido de atividades ilícitas ocorridas no vácuo do poder público. É assim que esses bandos armados liderados por agentes públicos – policiais, bombeiros, agentes penitenciários e até militares – dominam determinadas áreas da cidade, em geral de baixa renda. Trata-se, na verdade, de uma das modalidades de crime mais organizadas do Rio de Janeiro, justamente porque surge dentro do Estado, utilizando-se do aparato estatal. Mas não se trata de um Estado paralelo, e sim de um Estado leiloado, que atende a interesses particulares. Uma vez controlada a região, as milícias passam a impor aos moradores um comércio de serviços ilegais, como ligações clandestinas de TV a cabo, gás e água, transporte alternativo e “segurança” mediante a cobrança de taxas. Recentemente, a CPI descobriu que alguns desses grupos criminosos aliciam meninas, algumas menores de 18 anos, para a prostituição, e em determinadas áreas, praticam a especulação imobiliária. Além disso, hoje existem acusações do Ministério Público e condenações de quadros políticos do PMDB, DEM e PT. O vereador Jerominho Guimarães (PMDB) e o deputado cassado Natalino Guimarães (DEM), ambos inspetores da polícia civil, e a candidata a vereadora Caminha Jerominho (PT do B) estão presos por liderar, segundo a polícia, a quadrilha autodenominada Liga da Justiça, que atua na zona oeste do Rio de Janeiro. Jorge Babu (PT) e Nadinho de Rio das Pedras (DEM) foram acusados formalmente pelo Ministério Público de envolvimento com as milícias. Podemos dizer que a CPI que investiga as milícias já venceu a batalha pedagógica de entendimento do que elas representam. Vários chefes milicianos começaram a ser presos, a publicidade das ações contra os grupos criminosos já está nas ruas, braços econômicos começam a ser quebrados. A CPI não vai desobrigar a investigação policial. Não se trata de substituir o Executivo, o Judiciário ou o Ministério Público, mas de contribuir para o funcionamento das instituições. É preciso discutir a relação entre Estado, governabilidade, território e soberania a fim de redefinir a concepção política de segurança – uma tarefa que não pode mais ser tratada simplesmente como um problema de polícia. Há um descontrole absoluto sobre as ações policiais, faltam ouvidorias com equipes e autonomia. A polícia é despreparada, a começar pelo fato de seus salários estarem entre os mais baixos do Brasil, em um cenário de intensa violência. Nas regiões pobres, o poder público se faz presente apenas por meio da repressão. Não há escolas, postos de saúde nem políticas sociais para a juventude. A lógica da segurança pública no Rio de Janeiro é a da ditadura, da busca de inimigos, em uma reafirmação da lógica da guerra, na qual a meta é derrotar o inimigo. Esse cenário enfraquece o poder público e faz com que sua soberania seja limitada. A milícia é fruto dessa deformidade, claro sinal de um perigoso processo de privatização da segurança. Necessitamos, todos, de uma política de segurança calcada numa cultura de defesa dos direitos. Marcelo Freixo é professor de História, deputado estadual (PSOL-RJ) e presidente da CPI das Milícias. |
Palavras chave: Segurança, Sociedade, ViolênciaFonte: Le Monde |
Combater as milícias, uma questão de soberania
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