Conferência realizada pelo Dr. Fernando Bastos Ribeiro em 28 de Agosto de 1952 no Auditório Coronel Niso de Viana Montezuma, Estado do Rio de Janeiro, Polícia Militar do Distrito Federal.
Senhor Comandante Geral da Polícia Militar, Srs. Oficiais, Srs. Alunos, Meus Senhores.
Nas altas esferas da administração policial cogitam-se – prazerosamente o registramos – de uma acentuada tendência para modificas as atuais atribuições do pessoal das polícias militares.
Trata-se de volvê-la primordialmente para serviço de polícia propriamente dito. Vale dizer que a esta tradicional Corporação caberá à parte principal do policiamento da cidade, ou seja, o seu policiamento ostensivo preventivo. Por isso, escolhi como tema desta palestra o de “Polícia ostensiva”.
Quero registrar o prazer e envaidecimento com que recebi do Comando Geral este convite e consignar o meu agradecimento. Um único sentimento me inspirou: foi o de são espírito de colaboração, sem qualquer pretensão personalista ou reformista.
A expressão “polícia ostensiva” e “polícia preventiva”, embora tenham sentido funcional diverso, confundem-se na prática. Isto porque quando se trata de polícia, com uso de uniforme ou farda, a ação ostensiva e preventiva são conjuntas.
O que poderia então chamar simplesmente de polícia ostensiva é a polícia de presença, de ostentação, de exibição, que constitui a manifestação concreta de que, em determinado lugar, através de um seu preposto, o Estado está presente para proteger pessoas e bens e manter a ordem pública.
Se o polícia ostensivo, com sua simples ação de presença, representa o próprio Estado, parece evidente fazer-se necessário que esta representação seja condigna.
Para que o seja, que é que se deve esperar dela, além de seu bom aspecto exterior? A resposta está no pensamento de todos: responsabilidade, correção, espírito de solidariedade, eficiência e competência funcional. Mas é preciso que essa convicção esteja no pensamento do povo. Que ele creia nela e principalmente que nunca se desiluda dela. Um polícia ostensivo, na modéstia de suas funções, é símbolo da ordem e da lei. Quando desmerece ele daquilo que representa, sofre as conseqüências disso toda a corporação e o próprio Governo.
Qual a origem da polícia? Ela nasceu da legítima defesa, enquanto o homem, isolado, tinha de prover a sua subsistência e a de seus descendentes, bem com a auto-proteção de seu núcleo familiar. Que o homem, primeiro defendeu-se do meio, e depois de seus semelhantes. Se considerarmos que o Estado se formou da reunião de tribos, as tribos de reunião de famílias e as famílias de reuniões de indivíduos, presos todos a um laço comum de costumes, de interesses, de religião, de culto aos antepassados, de fixação no solo e tradição, veremos evoluir o conceito de polícia de ação isolada, de uma ação isolada par ama ação associada, entre grupos de famílias se entreprotengendo. E a competência de supervisionar a segurança coletiva era atribuída sempre a varões ilustres, tal a importância que se dava à função policial. Segundo Marcel Le Clerc, na sua magnífica “Histoire de la Polcie ”, exerceram-na Platão, Demóstenes, Epaminondas e Platurco. Veremos, em seguida, á medida que o estado político se vai consolidando, a necessidade dessa proteção se estender a todos os cidadãos e, simultaneamente, serem eles convocados para, através de contribuições pecuniárias, formar a riqueza coletiva, pagando imposto. Os quadrilheiros, primeiros policiais que nesta cidade apareceram, eram simples cidadãos que tinha a seu cargo a proteção de “quadras” de a habitações e os “inspetores de quarteirões” são remanescentes dessa espécie de polícia primitiva. Formam, a princípio, voluntários. Só depois receberam cunho oficial. Surgiu depois o policia oficial, zelador da ordem e da segurança pública, pago pelo Estado, como consequência de receber o Estado o imposto do cidadão. Longe vai o tempo em que as contribuições eram dadas paro o erário do príncipe, que dele fazia o uso que bem entendesse. Dentro do espírito democrático do século, há um contrato tácito entre o contribuinte e o governo. Aquele não paga porque deve, mas sim concorda em pagar, e só o faz mediante a retribuição, por parte do Estado, de serviços públicos que redundem direta ou indiretamente em benefício coletivo. O contribuinte paga, mas quer saber e tem direito de saber como é que é empregada sua contribuição.
O contrato social de Russeau firmou as bases da sociedade moderna e, mito embora seus princípios já tenham sido superados, nunca foram contestados. As tendências absorventes e as teorias totalitárias, tem apenas arruinado alguns povos. E em nossos dias, ainda assistimos a derrocada de um sistema político simultaneamente popular. As tiranias trazem consigo o germe da autodestruição. É a lição da História, e a História nunca errou… Entre as retribuições que o Estado moderno se obriga a dar aos seus cidadãos, o troco dos impostos que lhes cobra, está a polícia. Mas não somente a polícia, mas uma boa polícia. Que melhor será não a ter do que tê-la má; mais protegido ficará o cidadão protegendo-se, do que julgando-se protegido por quem não está na altura de o fazer.
E chegamos, senhores, ao ponto central do nosso tema, qual seja o de definir e descrever uma boa polícia ostensiva. Comecemos por situá-la dentro do organismo do Estado. Ela é o ponto de contato real e positivo entre o povo e a justiça. Convenhamos que é uma função delicada e nobre, difícil, mas, para que negar, muitas vezes incompreendida. Se os três primeiros adjetivos usados a enaltecem, necessário se faz um bom prepara para exercê-lo com eficiência. E se o ultimo adjetivo côo que a desmerece, o meio de reduzir essa antipatia é fazê-la limitada apenas àquela parte da sociedade, cujo conceito não possa pesar na opinião pública, isto é, daqueles que vivem á margem da lei. Uma polícia ostensiva só encontra “habitat” favorável quando é apoiada por dois lados: de um, pela parte sã da sociedade que a prestigia, que nela confia, que a respeita por merecer ela o seu respeito, que não a teme porque vê nela uma proteção; por outro lado, pela Justiça que nela crê que a vê como uma auxiliar sua, digna de fé, que lhes fiscaliza as atitudes e as aprova, pois a sente endossada pela opinião pública. Havemos de convir que, desgraçadamente, ainda estamos bem longe desse escopo. Ainda não tratamos de dar aos nossos policiais de rua preparo moral e material capazes de fazer aquele tipo de vigilante satisfatoriamente pago, cônscio de seus deveres, disciplinado, respeitador e protetor, amigo natural do homem da rua, mas severo cumpridor de seus deveres, que conhece cumpre; o homem cuja presença, longe de incomodar, tranqüiliza e reconforta. Enfim, o portador de um armamento que sabe ser nunca de agressão, mas sempre de proteção ou, quando muito, de defesa. É um erro pensar-se que a boa polícia ostensiva é a numerosa. Ela é boa quando é selecionada, instruída e treinada. O exemplo do policial orienta o povo e disciplina sem violência. A tendência das massas, mesmo no Brasil, não é de criar embaraços a alguém que elas sintam protegê, mas de hostilizar aquilo que sente faccioso ou sem moral. O exemplo do polícia de rua inglês e americano, o admirável polícia canadense e holandês não são exemplos impossíveis de imitar. O povo lhes dá pequenos nomes de amizade, o burguês, o operário o saúda pelo nome. Entretanto, vê-s e Oxford Street, em Londres, um simples “bobbie”, com um gesto interromper todo um tráfego para atravessar uma velhinha ou para prender um bêbado, sem que suja alguém a perturbá-lo, a criticá-lo ou a gritar “não pode”. E toda uma província canadense garantida por dois ou três Guardas Reais Montados. Vê-se um “policeman” americano mandar encostar ao meio-fio o carro de um milionário faltoso e conduzi-lo perante o juiz, que o multará, sem que o ameacem ou intimidem. Vê-se nas ruas de Roterdam todo o tráfego ficar suspenso para que atravesse a avenida, sem perigo, um grupo de colegiais. A cortesia e o bom humor dos guardas americanos fá-los procurados por turistas estrangeiros e a prestabilidade das grandes polícias mundiais torna-se um conforto e uma garantia. A simpatia popular de que goza a polícia escandinava é, por ela, cuidadosamente cultivada e agora mesmo, a nova Itália, acaba de criar um corpo especial de guardas destinados especialmente a orientar e proteger turistas. Tais organizações não poderiam adquirir uma tão sólida tradição de benquerença e respeitabilidade se, através de um longo período de tempo não as tivessem seus dirigentes plasmado e instruído para que vivessem em contato com o povo, num clima psicologicamente harmonioso. Essa benquerença popular, para aquele homem uniformizado, atencioso, protetor por dever e por feitio, representa u reconforto, dentro do qual pode um policial agir com serenidade e eficiência, pós sua maneira, a sua ação e o seu trabalho diário a criaram e cultivaram. Esses são os elementos básicos sociais dentro dos quais – e só dentro deles – pode existir policia ostensiva digna desse nome. Leis boas e sensatas os deve proteger, de modo a que, quando for ele obrigado a intervir, porque algo ocorreu, a sua ação será prestigiada e apoiada pela Justiça do País. Isso é necessário para que essa justiça nele confie também e não possa admitir, a não ser excepcionalmente, a possibilidade de que esse seu representante falseie a verdade ou abuse de sua autoridade. O prestigio, portanto, de uma polícia ostensiva, gravita em redor de dois pólos: a confiança que tem o povo em cada um de seus componentes, isoladamente, e no apoio que lhes dão aqueles que têm por função distribuir justiça. Mas é preciso que ela, polícia, tenha junto de ambos seu prestígio formado. Para que se possa obter um agente de autoridade nessas condições, três fatores se impõem: 1º) Seleção física e psíquica. 2º)Instrução especializada. 3º) Remuneração adequada.
Observemos um polícia de rua á distancia. Para que ele imponha respeito, para que ele seja em realidade um símbolo de ordem, para que sua presença seja um freio e um aviso, é necessário que tenha um físico respeitável, uma atitude serena e posada, movimento tranqüilos, embora sinta-se a sua atenção volvida para a área em que trabalha; que tenha ele trajes limpos, que seja uma pessoa fisicamente tratada. Se nos aproximarmos dele e dirigirmos a palavra, esperamos que nos de atenção, que seja cortes, que nos possa dar a informação que precisamos, ou o auxílio que carecemos. O policia de rua é um símbolo. Como qual precisa ter imponência em sua aparência exterior. Não se pode negar a influencia psicológica, junto ás massas, da maneira de apresentar e da maneira de falar. O homem da rua só respeitara alguém em que ele sinta uma superioridade pessoal ou intelectual e amparado, legalmente, na função que exerce, sabendo-a exercer. Para que se possa ter uma polícia ostensiva, digna de uma grande cidade e de uma grande população, há que selecionar seus componentes, tendo em vista seu aspecto físico, a sua robustez, a sua preparação e há que instruí-lo sobre a maneira de uniformizar-se, de portar-se, tendo em vista que, onde estiver, representa não ele só, mas toda uma Corporação.
Mais importantes, entretanto, são as condições psíquicas dos policiais. Somente temperamentos sujeitos a autocontrole devem ser aproveitados, não podem e não devem ser polícias os exasperados, os irritáveis, os impulsivos, os temperamentais, os recalcados, os deprimidos, os tímidos, os irresolutos e toda essa multidão de fronteiriços esquizoides, e personalidades psicopáticas diversas que aflui, candidata permanente a tosos os empregos.
Constituem perigo potencial os portadores de complexos de violência, de cobiça e de culpa. Em função, vão exteriorizá-los para dar vazão a seus sentimentos reprimidos. Na famosa escola de polícia inglesa, Peel House, essa seleção psicológica é feita desde 1907, data de sua fundação. Explica-se assim a fama universal da eficiência e cortesia dos “bobbies” londrinos.
Só mediante uma rigorosa triagem no material humano, candidato à carreira policial, será possível selecionar um conjunto de indivíduos em condições de lidar com o povo, ser por ele respeitado e por ele querido. A policia norte americana, que há muito vem selecionando o material humano do seu “Policie Corp”, dá preferência a irlandeses ou descendentes de irlandeses, afirmando ter essa raça três qualidades congênitas de alta valia para a profissão policial: são robustos, honestos e teimosos.
Escolhido o material humano adequado, ter-se-á apenas matéria prima útil, mas ainda não utilizável. Uma longa e dolorosa experiência tem demonstrado o quanto é errado, senão criminoso, o critério dos policiais improvisados. Que não se tenha pressa em fazer uniformes e distribuir armamento. Que não se tenha pressa em fazer número, mas que se tenha cuidado em fazer qualidade.
Na segunda fase da formação de policiais, entramos no campo de sua aprendizagem profissional. Ela não precisa ser demorada, mas precisa ser intensiva. É necessário que nesse primeiro período, ocupe-se o policial aluno tão intensamente, tão exclusivamente seja ele envolvido por assuntos da sua profissão, que não tenha ele tempo de divagar, nem pensar em outras coisas. Nesse período, tem de plasmar uma mentalidade policial. Ele tem que ter presente que, se não sair bem nessa fase de estudo prático e teórico, ele não poderá ser polícia. Ele terá que ensaiar, para começar a trabalhar. É preciso que se desperte nele o desejo de poder ser considerado um policial e a certeza de que isso ocorrerá, se ele conseguir absorver e aplicar os conhecimentos que lhe vão ser administrados. Esses conhecimentos terão que ser principalmente práticos e objetivos. Ao menos para ele, far-se-á necessário que nos furtemos à tremenda tendência acadêmica que tem o nosso ensino geral. A preocupação das escolas de polícia devera ser de criar policiais eficientes, conhecedores de sua profissão, de aguçar-lhes o espírito de iniciativa e exercitar-lhes a agilidade menta para soluções de emergência. Paralelamente, há conhecimentos básicos teóricos indispensáveis. É preciso que o policial aluno adquira tirocínio de serviço, que se familiarize com os diversos problemas que terá que enfrentar normalmente, e saiba usar as soluções adequadas. É principalmente indispensável que se elimine desses policiais de amanhã a tendência à prepotência, á exibição e à violência. É preciso que eles sintam que tem muito mais deveres e obrigações para com o próximo do que direitos e garantias para si mesmos. Ele terá que ter sempre presente que ele não é apenas ele mesmo: ele é o representante de uma Corporação que é uma extensão da própria lei. O conceito que deverá ter de sua responsabilidade não lhe deve atrofiar as faculdades de ação e reação. Ele terá, enfim, que se situar com muita clareza e muita firmeza dentro da sociedade para a qual ele vai trabalhar, e que tem por dever protege. Mesmo para o lado mau dessa sociedade, que ele terá que reprimir, é preciso que ele sinta que só poderá fazer de forma adequada e dentro dos limites que a lei permita.
Deverá ser mais intenso o trabalho de formação psicológica de um polícia do que propriamente o acúmulo de conhecimentos a lhe serem ministrados. É muito grande a responsabilidade dos professores, educadores e formadores de serventuários da Polícia. O seu exemplo, as suas idéias, os seus conselhos fixar-se-ão nesse material novo, ainda em fase de plasmação, mais que os livros, falarão eles e, mais que os compêndios, fixar-se-ão seus conselhos. E é preciso que nunca verifique o aluno, na prática, que o que lhe ensinaram e disseram não era verdade, ou não era a verdade toda. Será nesse período de aprendizagem que esses homens se conhecerão, privarão de perto uns com os outros e é aí que nascera algo indispensável em qualquer Corporação , que é o espírito de classe, que é cooperação, fraternidade e respeito mútuo, em contraposição ao espírito de casta que é agressividade e restrição a tudo que não está compreendido dentro de um círculo fechado. É nesse período de educação e de preparação, tanto de corpo como de espírito, que terão de ser formados e plasmados. É indispensável que uma boa e moderada educação física dê ao pessoal autoconfiança. O homem forte, que tem consciência de sua robustez, que se sabe defender sem excesso sabe reprimir sem violência, torna-se um polícia de rua com enorme confiança em si mesmo e isso é um antídoto contra violências inúteis.
Num país como o nosso, onde praticamente nenhuma organização policial é benquista, onde todos se julgam com direito a privilégios, onde as imunidades se multiplicam, onde se considera uma humilhação ser advertido por um representante da lei, só uma organização policial muito bem adestrada, muito bem educada, muito paciente, mas muito cônscia de seus deveres, os podem enfrentar. Que, não há de negar, também seja uma das grandes falhas de nosso povo e uma das grandes fraquezas de nossa organização social, a falta de respeito generalizado ao principio da lei. Sempre que entre nós a lei contraria, há uma forte tendência ou a procurar ignora-la ou a invocar uma imunidade, e isto acaba transformando a nossa sociedade a um verdadeiro arquipélago de pequenas potências sociais, sem unidade, sem autossuficiência, sem uniformidade e, cada uma delas, um pequeno monstro vaidoso e vulnerável. Não há país de mais liberdade que os Estados Unidos, e, entretanto, ninguém tem mais respeito pela lei do que o norte americano.
Tenho a impressão, senhores, de estar vendo na expressão de rosto de todos uma pergunta: se para ser um simples polícia ostensivo, um simples polícia de rua, é necessário um físico selecionado e uma educação profissional aperfeiçoada, então essa polícia terá que ser constituída de uma verdadeira elite de matéria humano. Quanto pagará o governo a funcionários dessa espécie?
Esse é o terceiro aspecto da questão. Vamos analisá-lo: afirmaremos, preliminarmente, duas coisas: 1ª) Polícia é um serviço caro. 2ª) Não pode haver polícia mal pago. É evidente que a segunda afirmativa é uma consequência da primeira. Se considerar o tipo de trabalho que a um polícia digno desse nome é atribuído, não há como deixar de reconhecer que, por esse prêmio e por proteção, deve ser um homem com salário remunerador. Que a função policial traz no seu bojo o aspecto antipático de contrariar interesses e, portanto, é alvo de natural malquerenças e de reações. A malquerença se manifesta em oposições naturais e sutis da ação. As reações te m aspectos os mais variáveis, e vão desde a queixa caluniosa até a tentativa de suborno. Para que um policial se mantenha indene, em meio a esse turbilhão é que o emprego lhe seja compensador, que ele evite, por todos os meios, perde-lo, e para isso saiba cumprir o seu dever honestamente, dentro das normas legais. E para que não fique sele sujeito às tentações da corrupção, é necessário que veja na profissão que abraçou possibilidades presentes e garantias de futuro como esperar rigidez de têmpera, como pretender policiais incorruptos, como pregar decência profissional a homens cujos salários mesquinhos os fazem trabalhar preocupados com problemas econômicos, domésticos, com os filhos sem escola, com alimento escasso, com roupa insuficiente, com doença da esposa, com moradia precária e distante, com o transporte à sua custa e sem hora para refeições e muitas vezes sem refeições pra qualquer hora?
Seria necessário fossem eles quase semideuses para que, premidos de toda espécie de agrura e de tormentos, se pudessem conservar invulneráveis e insensíveis.
Confessemos, honestamente, que só se pode exigir honestidade profissional daquele que ganha o suficiente para viver decentemente, para aquele que tenha diante de si possibilidades de acesso e que não precise arriscar o seu emprego e sua honra para prover às necessidades mais imediatas. Esse não prevaricará com facilidade, porque tem um bom emprego a defender. Esse poderá reagir contra o meio para, com o dever bem cumprido, criar seu patrimônio com auxilio do Estado, seu patrão.
Observemos agora quais as tendências que se observam na alta administração policial.
Até hoje tiveram a Guarda Civil e a Guarda Municipal as atribuições principais do policiamento urbano, ou seja, do policiamento ostensivo de logradouros públicos. À primeira sempre coube à responsabilidade da cobertura diurna da cidade e á segunda a cobertura noturna. Enquanto a primeira ficou estática no seu desenvolvimento, com efetivos anualmente mais reduzidos, a segunda vem tendo aumento de efetivos, muito embora nos pareça que a sua produção e sua eficiência não vem se processando na mesma progressão.
A sucessiva diminuição de efetivos da Guarda Civil se deve às necessidades sempre crescentes do serviço de trânsito, que vem lhe absorvendo o material humano. Não obstante a grande simpatia que tenho por essa Corporação, da qual fui Diretor, é com pesar que sou obrigado a reconhecer não estar ela mais à altura de assumir a responsabilidade do policiamento de uma cidade de perto de dois milhões e meio de habitantes.
Não será com menos de mil homens, efetivo que lhe resta, dos quais um terço em serviços internos, que tal missão será cumprida. Fundada com 1.500 homens, em 1094, seu efetivo nunca ultrapassou 2.500. Nunca foi modernizada. Enquanto isso, o número de investigadores do D.F.S.P. crescia de 30, em 1890, para mais de 2000 em nossos dias, constituindo pessoal extranumerário, sem curso ou concurso, de livre nomeação e sem ação ostensiva.
Enquanto Buenos Aires tem 24.000 policiais urbanos, Nova York 35.000, Londres 42.000 e já em 1830 tinha 3.314, e São Paulo 7.000, a Capital Federal não chega a ter um polícia para cada 2.500 habitantes, sem se levar em conta sua tremenda extensão urbana e sua angustiada topografia. Por outro lado, não se pode subestimar a importância e a gravidade do problema do tráfego, que exige o emprego de um número elevado de homens.
Verifica-se, assim, que está aberto um problema, qual seja o de prover o policiamento ostensivo da cidade, peno menos durante o dia. Tudo indica a tendência natural de nela ser empenha a Polícia Militar do Distrito Federal.
Estará ela em condições de assumir essa responsabilidade?
Salvo juízo melhor, responderíamos; sim, quanto a seu efetivo (admitindo o preenchimento integral de seus quadros); sim, também quanto a sua tradição a respeitabilidade; mas parece-nos dever dizer não, quanto ao preparo de seus componentes. A oficialidade da Polícia Militar é toda constituída por homens que, não obstante haverem feito cursos, uma vez trazidos para um setor tipicamente de policiamento, precisariam de uma rápida, porem intensiva, fase de adaptação. Quanto aos inferiores e praças, far-se-ia necessário um trabalho mais intenso e prolongado. O material humano todo ele é bom e utilizável, mas está desambientado da função policial ostensiva propriamente dita e de contato direto com o povo. E nós conhecemos as razões. Durante muitos anos predominou, na instrução e na formação das polícias militares, a instrução militar sobre a instrução policial, dão o caratê que tem essa organização de força auxiliar do Exército. Esse caráter, entretanto, tem sido sucessivamente afastado e, como tipo de combatente, mesmo auxiliar, ele é de utilização precária.
Por que conserva-lo, então, platonicamente militar quando a sua utilização em serviço ativo de policiamento se faz dia a dia mais necessário? Bastará – e vemos e sabemos que sabiamente essa diretriz vem sendo aos poucos seguida pelo Comando Geral – modificar-lhe o tipo de instrução e a forma de trabalho.
Tenho a impressão, senhores, que para transformar a Polícia Militar em Corporação de Polícia, se faz necessário aplicar-lhe os três requisitos essenciais que enumerei como indispensáveis á formação de bons policiais: seleção física e psíquica, treinamento especializado e intensivo e remuneração conveniente.
Não será possível exigir-se de um polícia militar, vencendo o salário de praça de pré, a responsabilidade de um polícia de rua, trabalhando isoladamente, afastado, portanto, da rigidez do Quartel, a que está habituado, necessitando de ação rápida e enérgica, de agilidade cerebral e de atitude individual que o imponha ao respeito de seus concidadãos, por si mesmo, sem que ele se torne, realmente, um agente de autoridade, revestido dessa atribuição integral e acobertado de humilhações e de perigos, de suborno e de corrupção. Mas não me parece obra difícil. Os cursos que funcionam na Polícia Militar, devidamente ambientados no ramo da vida policial darão gerações de instrutores com mentalidade evoluída, capazes de, em curto período, formar quadros de policiais que, aos poucos, ir-se-ão adensando, até arrastar a totalidade da Corporação.
E não se diga que com isso se possa ressentir a segurança nacional. Pelo contrário, ela ficará mais fortalecida, que mais fortalecida ficará a ordem pública, o equilíbrio social, a vida e bens dos cidadãos.
A época em que vivemos, de incertezas e desajustes em que todos os povos têm por dever atentar cuidadosamente para sua defesa e conservação de seus princípios nacionais, reservas do Exército são todas as classes do País, que convocada serão todas elas a serviço efetivo, no dia em que as nuvens da guerra se abaterem sobre o País.
A palavra guerra de há muito já não tem concepção local. Ela passou a ser total e, em futuro infelizmente próximo, será integral.
Entendo que as Polícia Militares, empenhada em ação de polícia ostensiva, para isso devidamente adestradas, darão à defesa do país subsídio mais precioso do que na sua simples função atual de força auxiliar. E a do Distrito Federal, nessa nova fase, saberá cultuar as suas honrosa tradições, que constituem um patrimônio de dedicação, trabalho e espírito de sacrifício.
É desse material e desse espírito que se faz necessário em uma polícia para a Capital da República.
Encerrarei esta palestra citando o que usou Robert Peel, Ministro do Interior da Inglaterra, quando pleiteava do duque de Wallington a organização da Scotland Yard, esta secular, tradicional e exemplar polícia do Reino Unido.
“Eu quero ensinar a um povo livre, que ser livre, não é ver sua casa saqueada por bandos organizados de malfeitores, nem entregar as ruas de Londres a mulheres bêbada e a homens vagabundos.
Eu quero que se sinta mais livre ainda um povo protegido pela polícia que ele paga e que o respeita”.
Tenho como certo, Senhores, que só teremos um polícia à altura de nossas necessidades quando um Corpo Policial único absorver todas as organizações policiais e para-policiais existentes no Rio de Janeiro. E são, no momento, em número de 14.
Só quando todas elas tiverem um só comando, um só uniforme, uma só instrução e uma só mentalidade profissional, estaremos trilhando caminho certo.
E à Polícia Militar, a mais antiga, a mais numerosa, a de quadros mais rijos, caberá liderar tal movimento” * Texto Publicado pelo TC Ivon Correa no Facebook em resposta a um debate que levantei.
Senhor Comandante Geral da Polícia Militar, Srs. Oficiais, Srs. Alunos, Meus Senhores.
Nas altas esferas da administração policial cogitam-se – prazerosamente o registramos – de uma acentuada tendência para modificas as atuais atribuições do pessoal das polícias militares.
Trata-se de volvê-la primordialmente para serviço de polícia propriamente dito. Vale dizer que a esta tradicional Corporação caberá à parte principal do policiamento da cidade, ou seja, o seu policiamento ostensivo preventivo. Por isso, escolhi como tema desta palestra o de “Polícia ostensiva”.
Quero registrar o prazer e envaidecimento com que recebi do Comando Geral este convite e consignar o meu agradecimento. Um único sentimento me inspirou: foi o de são espírito de colaboração, sem qualquer pretensão personalista ou reformista.
A expressão “polícia ostensiva” e “polícia preventiva”, embora tenham sentido funcional diverso, confundem-se na prática. Isto porque quando se trata de polícia, com uso de uniforme ou farda, a ação ostensiva e preventiva são conjuntas.
O que poderia então chamar simplesmente de polícia ostensiva é a polícia de presença, de ostentação, de exibição, que constitui a manifestação concreta de que, em determinado lugar, através de um seu preposto, o Estado está presente para proteger pessoas e bens e manter a ordem pública.
Se o polícia ostensivo, com sua simples ação de presença, representa o próprio Estado, parece evidente fazer-se necessário que esta representação seja condigna.
Para que o seja, que é que se deve esperar dela, além de seu bom aspecto exterior? A resposta está no pensamento de todos: responsabilidade, correção, espírito de solidariedade, eficiência e competência funcional. Mas é preciso que essa convicção esteja no pensamento do povo. Que ele creia nela e principalmente que nunca se desiluda dela. Um polícia ostensivo, na modéstia de suas funções, é símbolo da ordem e da lei. Quando desmerece ele daquilo que representa, sofre as conseqüências disso toda a corporação e o próprio Governo.
Qual a origem da polícia? Ela nasceu da legítima defesa, enquanto o homem, isolado, tinha de prover a sua subsistência e a de seus descendentes, bem com a auto-proteção de seu núcleo familiar. Que o homem, primeiro defendeu-se do meio, e depois de seus semelhantes. Se considerarmos que o Estado se formou da reunião de tribos, as tribos de reunião de famílias e as famílias de reuniões de indivíduos, presos todos a um laço comum de costumes, de interesses, de religião, de culto aos antepassados, de fixação no solo e tradição, veremos evoluir o conceito de polícia de ação isolada, de uma ação isolada par ama ação associada, entre grupos de famílias se entreprotengendo. E a competência de supervisionar a segurança coletiva era atribuída sempre a varões ilustres, tal a importância que se dava à função policial. Segundo Marcel Le Clerc, na sua magnífica “Histoire de la Polcie ”, exerceram-na Platão, Demóstenes, Epaminondas e Platurco. Veremos, em seguida, á medida que o estado político se vai consolidando, a necessidade dessa proteção se estender a todos os cidadãos e, simultaneamente, serem eles convocados para, através de contribuições pecuniárias, formar a riqueza coletiva, pagando imposto. Os quadrilheiros, primeiros policiais que nesta cidade apareceram, eram simples cidadãos que tinha a seu cargo a proteção de “quadras” de a habitações e os “inspetores de quarteirões” são remanescentes dessa espécie de polícia primitiva. Formam, a princípio, voluntários. Só depois receberam cunho oficial. Surgiu depois o policia oficial, zelador da ordem e da segurança pública, pago pelo Estado, como consequência de receber o Estado o imposto do cidadão. Longe vai o tempo em que as contribuições eram dadas paro o erário do príncipe, que dele fazia o uso que bem entendesse. Dentro do espírito democrático do século, há um contrato tácito entre o contribuinte e o governo. Aquele não paga porque deve, mas sim concorda em pagar, e só o faz mediante a retribuição, por parte do Estado, de serviços públicos que redundem direta ou indiretamente em benefício coletivo. O contribuinte paga, mas quer saber e tem direito de saber como é que é empregada sua contribuição.
O contrato social de Russeau firmou as bases da sociedade moderna e, mito embora seus princípios já tenham sido superados, nunca foram contestados. As tendências absorventes e as teorias totalitárias, tem apenas arruinado alguns povos. E em nossos dias, ainda assistimos a derrocada de um sistema político simultaneamente popular. As tiranias trazem consigo o germe da autodestruição. É a lição da História, e a História nunca errou… Entre as retribuições que o Estado moderno se obriga a dar aos seus cidadãos, o troco dos impostos que lhes cobra, está a polícia. Mas não somente a polícia, mas uma boa polícia. Que melhor será não a ter do que tê-la má; mais protegido ficará o cidadão protegendo-se, do que julgando-se protegido por quem não está na altura de o fazer.
E chegamos, senhores, ao ponto central do nosso tema, qual seja o de definir e descrever uma boa polícia ostensiva. Comecemos por situá-la dentro do organismo do Estado. Ela é o ponto de contato real e positivo entre o povo e a justiça. Convenhamos que é uma função delicada e nobre, difícil, mas, para que negar, muitas vezes incompreendida. Se os três primeiros adjetivos usados a enaltecem, necessário se faz um bom prepara para exercê-lo com eficiência. E se o ultimo adjetivo côo que a desmerece, o meio de reduzir essa antipatia é fazê-la limitada apenas àquela parte da sociedade, cujo conceito não possa pesar na opinião pública, isto é, daqueles que vivem á margem da lei. Uma polícia ostensiva só encontra “habitat” favorável quando é apoiada por dois lados: de um, pela parte sã da sociedade que a prestigia, que nela confia, que a respeita por merecer ela o seu respeito, que não a teme porque vê nela uma proteção; por outro lado, pela Justiça que nela crê que a vê como uma auxiliar sua, digna de fé, que lhes fiscaliza as atitudes e as aprova, pois a sente endossada pela opinião pública. Havemos de convir que, desgraçadamente, ainda estamos bem longe desse escopo. Ainda não tratamos de dar aos nossos policiais de rua preparo moral e material capazes de fazer aquele tipo de vigilante satisfatoriamente pago, cônscio de seus deveres, disciplinado, respeitador e protetor, amigo natural do homem da rua, mas severo cumpridor de seus deveres, que conhece cumpre; o homem cuja presença, longe de incomodar, tranqüiliza e reconforta. Enfim, o portador de um armamento que sabe ser nunca de agressão, mas sempre de proteção ou, quando muito, de defesa. É um erro pensar-se que a boa polícia ostensiva é a numerosa. Ela é boa quando é selecionada, instruída e treinada. O exemplo do policial orienta o povo e disciplina sem violência. A tendência das massas, mesmo no Brasil, não é de criar embaraços a alguém que elas sintam protegê, mas de hostilizar aquilo que sente faccioso ou sem moral. O exemplo do polícia de rua inglês e americano, o admirável polícia canadense e holandês não são exemplos impossíveis de imitar. O povo lhes dá pequenos nomes de amizade, o burguês, o operário o saúda pelo nome. Entretanto, vê-s e Oxford Street, em Londres, um simples “bobbie”, com um gesto interromper todo um tráfego para atravessar uma velhinha ou para prender um bêbado, sem que suja alguém a perturbá-lo, a criticá-lo ou a gritar “não pode”. E toda uma província canadense garantida por dois ou três Guardas Reais Montados. Vê-se um “policeman” americano mandar encostar ao meio-fio o carro de um milionário faltoso e conduzi-lo perante o juiz, que o multará, sem que o ameacem ou intimidem. Vê-se nas ruas de Roterdam todo o tráfego ficar suspenso para que atravesse a avenida, sem perigo, um grupo de colegiais. A cortesia e o bom humor dos guardas americanos fá-los procurados por turistas estrangeiros e a prestabilidade das grandes polícias mundiais torna-se um conforto e uma garantia. A simpatia popular de que goza a polícia escandinava é, por ela, cuidadosamente cultivada e agora mesmo, a nova Itália, acaba de criar um corpo especial de guardas destinados especialmente a orientar e proteger turistas. Tais organizações não poderiam adquirir uma tão sólida tradição de benquerença e respeitabilidade se, através de um longo período de tempo não as tivessem seus dirigentes plasmado e instruído para que vivessem em contato com o povo, num clima psicologicamente harmonioso. Essa benquerença popular, para aquele homem uniformizado, atencioso, protetor por dever e por feitio, representa u reconforto, dentro do qual pode um policial agir com serenidade e eficiência, pós sua maneira, a sua ação e o seu trabalho diário a criaram e cultivaram. Esses são os elementos básicos sociais dentro dos quais – e só dentro deles – pode existir policia ostensiva digna desse nome. Leis boas e sensatas os deve proteger, de modo a que, quando for ele obrigado a intervir, porque algo ocorreu, a sua ação será prestigiada e apoiada pela Justiça do País. Isso é necessário para que essa justiça nele confie também e não possa admitir, a não ser excepcionalmente, a possibilidade de que esse seu representante falseie a verdade ou abuse de sua autoridade. O prestigio, portanto, de uma polícia ostensiva, gravita em redor de dois pólos: a confiança que tem o povo em cada um de seus componentes, isoladamente, e no apoio que lhes dão aqueles que têm por função distribuir justiça. Mas é preciso que ela, polícia, tenha junto de ambos seu prestígio formado. Para que se possa obter um agente de autoridade nessas condições, três fatores se impõem: 1º) Seleção física e psíquica. 2º)Instrução especializada. 3º) Remuneração adequada.
Observemos um polícia de rua á distancia. Para que ele imponha respeito, para que ele seja em realidade um símbolo de ordem, para que sua presença seja um freio e um aviso, é necessário que tenha um físico respeitável, uma atitude serena e posada, movimento tranqüilos, embora sinta-se a sua atenção volvida para a área em que trabalha; que tenha ele trajes limpos, que seja uma pessoa fisicamente tratada. Se nos aproximarmos dele e dirigirmos a palavra, esperamos que nos de atenção, que seja cortes, que nos possa dar a informação que precisamos, ou o auxílio que carecemos. O policia de rua é um símbolo. Como qual precisa ter imponência em sua aparência exterior. Não se pode negar a influencia psicológica, junto ás massas, da maneira de apresentar e da maneira de falar. O homem da rua só respeitara alguém em que ele sinta uma superioridade pessoal ou intelectual e amparado, legalmente, na função que exerce, sabendo-a exercer. Para que se possa ter uma polícia ostensiva, digna de uma grande cidade e de uma grande população, há que selecionar seus componentes, tendo em vista seu aspecto físico, a sua robustez, a sua preparação e há que instruí-lo sobre a maneira de uniformizar-se, de portar-se, tendo em vista que, onde estiver, representa não ele só, mas toda uma Corporação.
Mais importantes, entretanto, são as condições psíquicas dos policiais. Somente temperamentos sujeitos a autocontrole devem ser aproveitados, não podem e não devem ser polícias os exasperados, os irritáveis, os impulsivos, os temperamentais, os recalcados, os deprimidos, os tímidos, os irresolutos e toda essa multidão de fronteiriços esquizoides, e personalidades psicopáticas diversas que aflui, candidata permanente a tosos os empregos.
Constituem perigo potencial os portadores de complexos de violência, de cobiça e de culpa. Em função, vão exteriorizá-los para dar vazão a seus sentimentos reprimidos. Na famosa escola de polícia inglesa, Peel House, essa seleção psicológica é feita desde 1907, data de sua fundação. Explica-se assim a fama universal da eficiência e cortesia dos “bobbies” londrinos.
Só mediante uma rigorosa triagem no material humano, candidato à carreira policial, será possível selecionar um conjunto de indivíduos em condições de lidar com o povo, ser por ele respeitado e por ele querido. A policia norte americana, que há muito vem selecionando o material humano do seu “Policie Corp”, dá preferência a irlandeses ou descendentes de irlandeses, afirmando ter essa raça três qualidades congênitas de alta valia para a profissão policial: são robustos, honestos e teimosos.
Escolhido o material humano adequado, ter-se-á apenas matéria prima útil, mas ainda não utilizável. Uma longa e dolorosa experiência tem demonstrado o quanto é errado, senão criminoso, o critério dos policiais improvisados. Que não se tenha pressa em fazer uniformes e distribuir armamento. Que não se tenha pressa em fazer número, mas que se tenha cuidado em fazer qualidade.
Na segunda fase da formação de policiais, entramos no campo de sua aprendizagem profissional. Ela não precisa ser demorada, mas precisa ser intensiva. É necessário que nesse primeiro período, ocupe-se o policial aluno tão intensamente, tão exclusivamente seja ele envolvido por assuntos da sua profissão, que não tenha ele tempo de divagar, nem pensar em outras coisas. Nesse período, tem de plasmar uma mentalidade policial. Ele tem que ter presente que, se não sair bem nessa fase de estudo prático e teórico, ele não poderá ser polícia. Ele terá que ensaiar, para começar a trabalhar. É preciso que se desperte nele o desejo de poder ser considerado um policial e a certeza de que isso ocorrerá, se ele conseguir absorver e aplicar os conhecimentos que lhe vão ser administrados. Esses conhecimentos terão que ser principalmente práticos e objetivos. Ao menos para ele, far-se-á necessário que nos furtemos à tremenda tendência acadêmica que tem o nosso ensino geral. A preocupação das escolas de polícia devera ser de criar policiais eficientes, conhecedores de sua profissão, de aguçar-lhes o espírito de iniciativa e exercitar-lhes a agilidade menta para soluções de emergência. Paralelamente, há conhecimentos básicos teóricos indispensáveis. É preciso que o policial aluno adquira tirocínio de serviço, que se familiarize com os diversos problemas que terá que enfrentar normalmente, e saiba usar as soluções adequadas. É principalmente indispensável que se elimine desses policiais de amanhã a tendência à prepotência, á exibição e à violência. É preciso que eles sintam que tem muito mais deveres e obrigações para com o próximo do que direitos e garantias para si mesmos. Ele terá que ter sempre presente que ele não é apenas ele mesmo: ele é o representante de uma Corporação que é uma extensão da própria lei. O conceito que deverá ter de sua responsabilidade não lhe deve atrofiar as faculdades de ação e reação. Ele terá, enfim, que se situar com muita clareza e muita firmeza dentro da sociedade para a qual ele vai trabalhar, e que tem por dever protege. Mesmo para o lado mau dessa sociedade, que ele terá que reprimir, é preciso que ele sinta que só poderá fazer de forma adequada e dentro dos limites que a lei permita.
Deverá ser mais intenso o trabalho de formação psicológica de um polícia do que propriamente o acúmulo de conhecimentos a lhe serem ministrados. É muito grande a responsabilidade dos professores, educadores e formadores de serventuários da Polícia. O seu exemplo, as suas idéias, os seus conselhos fixar-se-ão nesse material novo, ainda em fase de plasmação, mais que os livros, falarão eles e, mais que os compêndios, fixar-se-ão seus conselhos. E é preciso que nunca verifique o aluno, na prática, que o que lhe ensinaram e disseram não era verdade, ou não era a verdade toda. Será nesse período de aprendizagem que esses homens se conhecerão, privarão de perto uns com os outros e é aí que nascera algo indispensável em qualquer Corporação , que é o espírito de classe, que é cooperação, fraternidade e respeito mútuo, em contraposição ao espírito de casta que é agressividade e restrição a tudo que não está compreendido dentro de um círculo fechado. É nesse período de educação e de preparação, tanto de corpo como de espírito, que terão de ser formados e plasmados. É indispensável que uma boa e moderada educação física dê ao pessoal autoconfiança. O homem forte, que tem consciência de sua robustez, que se sabe defender sem excesso sabe reprimir sem violência, torna-se um polícia de rua com enorme confiança em si mesmo e isso é um antídoto contra violências inúteis.
Num país como o nosso, onde praticamente nenhuma organização policial é benquista, onde todos se julgam com direito a privilégios, onde as imunidades se multiplicam, onde se considera uma humilhação ser advertido por um representante da lei, só uma organização policial muito bem adestrada, muito bem educada, muito paciente, mas muito cônscia de seus deveres, os podem enfrentar. Que, não há de negar, também seja uma das grandes falhas de nosso povo e uma das grandes fraquezas de nossa organização social, a falta de respeito generalizado ao principio da lei. Sempre que entre nós a lei contraria, há uma forte tendência ou a procurar ignora-la ou a invocar uma imunidade, e isto acaba transformando a nossa sociedade a um verdadeiro arquipélago de pequenas potências sociais, sem unidade, sem autossuficiência, sem uniformidade e, cada uma delas, um pequeno monstro vaidoso e vulnerável. Não há país de mais liberdade que os Estados Unidos, e, entretanto, ninguém tem mais respeito pela lei do que o norte americano.
Tenho a impressão, senhores, de estar vendo na expressão de rosto de todos uma pergunta: se para ser um simples polícia ostensivo, um simples polícia de rua, é necessário um físico selecionado e uma educação profissional aperfeiçoada, então essa polícia terá que ser constituída de uma verdadeira elite de matéria humano. Quanto pagará o governo a funcionários dessa espécie?
Esse é o terceiro aspecto da questão. Vamos analisá-lo: afirmaremos, preliminarmente, duas coisas: 1ª) Polícia é um serviço caro. 2ª) Não pode haver polícia mal pago. É evidente que a segunda afirmativa é uma consequência da primeira. Se considerar o tipo de trabalho que a um polícia digno desse nome é atribuído, não há como deixar de reconhecer que, por esse prêmio e por proteção, deve ser um homem com salário remunerador. Que a função policial traz no seu bojo o aspecto antipático de contrariar interesses e, portanto, é alvo de natural malquerenças e de reações. A malquerença se manifesta em oposições naturais e sutis da ação. As reações te m aspectos os mais variáveis, e vão desde a queixa caluniosa até a tentativa de suborno. Para que um policial se mantenha indene, em meio a esse turbilhão é que o emprego lhe seja compensador, que ele evite, por todos os meios, perde-lo, e para isso saiba cumprir o seu dever honestamente, dentro das normas legais. E para que não fique sele sujeito às tentações da corrupção, é necessário que veja na profissão que abraçou possibilidades presentes e garantias de futuro como esperar rigidez de têmpera, como pretender policiais incorruptos, como pregar decência profissional a homens cujos salários mesquinhos os fazem trabalhar preocupados com problemas econômicos, domésticos, com os filhos sem escola, com alimento escasso, com roupa insuficiente, com doença da esposa, com moradia precária e distante, com o transporte à sua custa e sem hora para refeições e muitas vezes sem refeições pra qualquer hora?
Seria necessário fossem eles quase semideuses para que, premidos de toda espécie de agrura e de tormentos, se pudessem conservar invulneráveis e insensíveis.
Confessemos, honestamente, que só se pode exigir honestidade profissional daquele que ganha o suficiente para viver decentemente, para aquele que tenha diante de si possibilidades de acesso e que não precise arriscar o seu emprego e sua honra para prover às necessidades mais imediatas. Esse não prevaricará com facilidade, porque tem um bom emprego a defender. Esse poderá reagir contra o meio para, com o dever bem cumprido, criar seu patrimônio com auxilio do Estado, seu patrão.
Observemos agora quais as tendências que se observam na alta administração policial.
Até hoje tiveram a Guarda Civil e a Guarda Municipal as atribuições principais do policiamento urbano, ou seja, do policiamento ostensivo de logradouros públicos. À primeira sempre coube à responsabilidade da cobertura diurna da cidade e á segunda a cobertura noturna. Enquanto a primeira ficou estática no seu desenvolvimento, com efetivos anualmente mais reduzidos, a segunda vem tendo aumento de efetivos, muito embora nos pareça que a sua produção e sua eficiência não vem se processando na mesma progressão.
A sucessiva diminuição de efetivos da Guarda Civil se deve às necessidades sempre crescentes do serviço de trânsito, que vem lhe absorvendo o material humano. Não obstante a grande simpatia que tenho por essa Corporação, da qual fui Diretor, é com pesar que sou obrigado a reconhecer não estar ela mais à altura de assumir a responsabilidade do policiamento de uma cidade de perto de dois milhões e meio de habitantes.
Não será com menos de mil homens, efetivo que lhe resta, dos quais um terço em serviços internos, que tal missão será cumprida. Fundada com 1.500 homens, em 1094, seu efetivo nunca ultrapassou 2.500. Nunca foi modernizada. Enquanto isso, o número de investigadores do D.F.S.P. crescia de 30, em 1890, para mais de 2000 em nossos dias, constituindo pessoal extranumerário, sem curso ou concurso, de livre nomeação e sem ação ostensiva.
Enquanto Buenos Aires tem 24.000 policiais urbanos, Nova York 35.000, Londres 42.000 e já em 1830 tinha 3.314, e São Paulo 7.000, a Capital Federal não chega a ter um polícia para cada 2.500 habitantes, sem se levar em conta sua tremenda extensão urbana e sua angustiada topografia. Por outro lado, não se pode subestimar a importância e a gravidade do problema do tráfego, que exige o emprego de um número elevado de homens.
Verifica-se, assim, que está aberto um problema, qual seja o de prover o policiamento ostensivo da cidade, peno menos durante o dia. Tudo indica a tendência natural de nela ser empenha a Polícia Militar do Distrito Federal.
Estará ela em condições de assumir essa responsabilidade?
Salvo juízo melhor, responderíamos; sim, quanto a seu efetivo (admitindo o preenchimento integral de seus quadros); sim, também quanto a sua tradição a respeitabilidade; mas parece-nos dever dizer não, quanto ao preparo de seus componentes. A oficialidade da Polícia Militar é toda constituída por homens que, não obstante haverem feito cursos, uma vez trazidos para um setor tipicamente de policiamento, precisariam de uma rápida, porem intensiva, fase de adaptação. Quanto aos inferiores e praças, far-se-ia necessário um trabalho mais intenso e prolongado. O material humano todo ele é bom e utilizável, mas está desambientado da função policial ostensiva propriamente dita e de contato direto com o povo. E nós conhecemos as razões. Durante muitos anos predominou, na instrução e na formação das polícias militares, a instrução militar sobre a instrução policial, dão o caratê que tem essa organização de força auxiliar do Exército. Esse caráter, entretanto, tem sido sucessivamente afastado e, como tipo de combatente, mesmo auxiliar, ele é de utilização precária.
Por que conserva-lo, então, platonicamente militar quando a sua utilização em serviço ativo de policiamento se faz dia a dia mais necessário? Bastará – e vemos e sabemos que sabiamente essa diretriz vem sendo aos poucos seguida pelo Comando Geral – modificar-lhe o tipo de instrução e a forma de trabalho.
Tenho a impressão, senhores, que para transformar a Polícia Militar em Corporação de Polícia, se faz necessário aplicar-lhe os três requisitos essenciais que enumerei como indispensáveis á formação de bons policiais: seleção física e psíquica, treinamento especializado e intensivo e remuneração conveniente.
Não será possível exigir-se de um polícia militar, vencendo o salário de praça de pré, a responsabilidade de um polícia de rua, trabalhando isoladamente, afastado, portanto, da rigidez do Quartel, a que está habituado, necessitando de ação rápida e enérgica, de agilidade cerebral e de atitude individual que o imponha ao respeito de seus concidadãos, por si mesmo, sem que ele se torne, realmente, um agente de autoridade, revestido dessa atribuição integral e acobertado de humilhações e de perigos, de suborno e de corrupção. Mas não me parece obra difícil. Os cursos que funcionam na Polícia Militar, devidamente ambientados no ramo da vida policial darão gerações de instrutores com mentalidade evoluída, capazes de, em curto período, formar quadros de policiais que, aos poucos, ir-se-ão adensando, até arrastar a totalidade da Corporação.
E não se diga que com isso se possa ressentir a segurança nacional. Pelo contrário, ela ficará mais fortalecida, que mais fortalecida ficará a ordem pública, o equilíbrio social, a vida e bens dos cidadãos.
A época em que vivemos, de incertezas e desajustes em que todos os povos têm por dever atentar cuidadosamente para sua defesa e conservação de seus princípios nacionais, reservas do Exército são todas as classes do País, que convocada serão todas elas a serviço efetivo, no dia em que as nuvens da guerra se abaterem sobre o País.
A palavra guerra de há muito já não tem concepção local. Ela passou a ser total e, em futuro infelizmente próximo, será integral.
Entendo que as Polícia Militares, empenhada em ação de polícia ostensiva, para isso devidamente adestradas, darão à defesa do país subsídio mais precioso do que na sua simples função atual de força auxiliar. E a do Distrito Federal, nessa nova fase, saberá cultuar as suas honrosa tradições, que constituem um patrimônio de dedicação, trabalho e espírito de sacrifício.
É desse material e desse espírito que se faz necessário em uma polícia para a Capital da República.
Encerrarei esta palestra citando o que usou Robert Peel, Ministro do Interior da Inglaterra, quando pleiteava do duque de Wallington a organização da Scotland Yard, esta secular, tradicional e exemplar polícia do Reino Unido.
“Eu quero ensinar a um povo livre, que ser livre, não é ver sua casa saqueada por bandos organizados de malfeitores, nem entregar as ruas de Londres a mulheres bêbada e a homens vagabundos.
Eu quero que se sinta mais livre ainda um povo protegido pela polícia que ele paga e que o respeita”.
Tenho como certo, Senhores, que só teremos um polícia à altura de nossas necessidades quando um Corpo Policial único absorver todas as organizações policiais e para-policiais existentes no Rio de Janeiro. E são, no momento, em número de 14.
Só quando todas elas tiverem um só comando, um só uniforme, uma só instrução e uma só mentalidade profissional, estaremos trilhando caminho certo.
E à Polícia Militar, a mais antiga, a mais numerosa, a de quadros mais rijos, caberá liderar tal movimento” * Texto Publicado pelo TC Ivon Correa no Facebook em resposta a um debate que levantei.