Adolescentes morrem com tiros nas costas, não têm a morte investigada e as famílias não recebem qualquer reparação. De acordo com o levantamento Vidas adolescentes interrompidas – um estudo sobre 25 mortes violentas no Rio de Janeiro, lançado hoje (18), essas são as condições encontradas em muitos casos em que adolescentes, entre 12 e 17 anos, perderam a vida na Zona Norte da capital.  

Em 17 dos 25 casos investigados, não houve perícia no local da morte e, em parte das ocorrências, a cena do crime foi alterada pela remoção das vítimas, o que deve ocorrer apenas quando há possibilidade de socorro. Apenas em dois casos houve denúncia à Justiça. Ou seja, só em dois casos as investigações avançaram na direção de responsabilizar os autores.

A pesquisa foi conduzida pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser) e pelo Observatório de Favelas, com parceria técnica do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com parceria do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e apoio do Ministério Público do Rio de Janeiro, no âmbito das atividades do Comitê para Prevenção de Homicídios de Adolescentes no Rio de Janeiro.

Os pesquisadores analisaram a documentação das mortes de 25 meninos e meninas que ocorreram em 2017 na região da cidade do Rio de Janeiro que concentrou o maior número de mortes violentas de adolescentes, uma área que abrange 20 bairros da Zona Norte e os complexos de favelas da Pedreira, Chapadão e Acari. Foram analisados os registros de ocorrência, laudos de necropapiloscopia, que é a identificação das vítimas a partir das digitais, e laudos de necropsia, ou seja, a análise de peritos legistas sobre a natureza das lesões e a causa provável da morte.

“Considero os números de violência letal intencional contra adolescentes um verdadeiro escândalo”, diz o pesquisador do Iser e professor da Universidade Federal Fluminense, André Rodrigues, um dos coordenadores da pesquisa. “Essas mortes são mortes evitáveis. São números completamente inaceitáveis Importante que a sociedade se sensibilize e passe a considerar que é inaceitável que convivamos com essa incidência de letalidade”. 

Dos 25 adolescentes, 23 vítimas morreram por arma de fogo, incluindo nove mortes decorrentes de intervenção policial. De acordo com o estudo, 14 tiveram ao menos uma perfuração nas costas. Esta característica aparece, inclusive, em cinco dos nove casos decorrentes de intervenção policial. Em todos os registros de ocorrência, o relato de como ocorreu a morte se baseou exclusivamente na narrativa dos policiais, sem que tivessem sido ouvidas outras testemunhas.

“Responsabilização é estratégia de prevenção de novos homicídios. Esse descaso impede a prevenção. Das 25 mortes, só duas chegaram à Justiça. Esse descaso perpetua a violência”, diz a coordenadora do Território Sudeste do Unicef, Luciana Phebo, que também coordenou o estudo. 

Mortes no estado 

Considerando todo o estado do Rio de Janeiro, de janeiro de 2013 a março de 2019, houve 2.484 homicídios de adolescentes. Estão incluídos os homicídios, as mortes por intervenção de agentes do Estado, os latrocínios e as lesões corporais seguidas de morte. Entre as vítimas, 79% eram negros e 76% tinham entre 16 e 17 anos. 

Entre as causas da letalidade violenta dos adolescentes nesse período, a maioria foi por homicídios dolosos, em que há intenção de matar. A segunda causa foi a ação de policiais, totalizando 22%. Na capital, a proporção de vítimas por ações da polícia chegou a 34% nesse período.

De acordo com os dados disponibilizados na pesquisa, a proporção das mortes causadas por agentes do Estado vem crescendo nos últimos anos na capital do Rio de Janeiro. Entre janeiro e março de 2019, o percentual chegou a cerca de 40%.

“O Estado está falhando fortemente no sentido de permitir que polícia tenha participação tão grande no número dessas mortes, qualquer lugar do mundo onde haja respeito à vida a gente não poderia permitir”, diz Rodrigues. 

Rede de proteção

A pesquisa também avaliou a rede de proteção disponível para os adolescentes, composta por serviços de educação, como as escolas, de saúde e de assistência social. A conclusão é que a rede disponível aos adolescentes é precarizada e desarticulada. 

O estudo sugere uma série de medidas para melhorar essa assistência. Entre elas, a garantia do acesso seguro e contínuo aos serviços essenciais de saúde, educação e assistência; a garantia de que os padrões de atuação policial em favelas e periferias respeitem sempre os direitos e a vida dos moradores; a criação de políticas específicas para adolescentes negros; e a priorização das investigações de mortes violentas de crianças e adolescentes, que está prevista a resolução do Ministério Público do Rio de Janeiro de 21 de novembro de 2018. 

“Começando pelo acesso seguro às escolas. Garantir que as crianças e adolescentes possam chegar e permanecer nas escolas com segurança, sem tiroteio. Isso é uma articulação importantíssima entre Segurança Pública e Secretaria de Educação e comunidade escolar, de diferentes territórios”, diz Luciana Phebo. 

Polícias 

Procurada pela Agência Brasil, em nota, a Secretaria de Estado de Polícia Militar (PM) informou que a atuação da Corporação “segue protocolos técnicos, tendo como preocupação central a preservação de vidas, assim como as determinações estabelecidas pela legislação vigente e por decisões judiciais”. 

A PM acrescenta: “muitas vezes, nossos policiais são atacados de maneira inconsequente por indivíduos em posse de armas de alto poder de destruição, que disparam tiros em direção à tropa e fazem a opção pelo confronto. Neste cenário, também vale ressaltar que o Rio de Janeiro possui características únicas, sociais e históricas, que afetam diretamente a atuação das equipes de segurança pública”.

Quando ações policiais resultam em casos de lesão corporal ou óbito, são instaurados dois inquéritos. Um pela Delegacia de Polícia Civil responsável pela investigação do fato e o outro pela Polícia Militar, através de Inquérito Policial Militar (IPM) aberto pela unidade da Corporação envolvida na ocorrência, ambos acompanhados pelo Ministério Público. Segundo a PM, até 14 de dezembro de 2020 foram apreendidas 5.971 armas de fogo, entre as quais 247 fuzis. Nesse período, 30.370 adultos foram presos, e 4.456 adolescentes apreendidos foram conduzidos às unidades da Polícia Civil.