Para o pesquisador Paulo Rezzutti, que escreveu biografias de personagens complexos como Dom Pedro e Maria Leopoldina, é necessário quebrar estereótipos sobre as figuras poderosas do Brasil e de Portugal na época.
“É preciso compreender que eles estão envolvidos em um processo de ideias novas, quebra de paradigmas, como a queda do absolutismo em 1820. É um caldeirão fervilhante com esses personagens interessantes no meio”.
Para Rezzutti a chegada dos lusos vai gerar impactos econômicos para o Brasil, que era antes uma espécie de “propriedade privada de Portugal” e virou a sede do império, enquanto a metrópole se afundava entre guerras. Os conflitos em Portugal somente diminuíram quando os ingleses conseguem expulsar os franceses do seu território. Assim, os recursos financeiros passam a abastecer mais o reino britânico e os portugueses começam a sentir os mesmos efeitos da colônia.
Enquanto Dom João decretava abertura dos portos do Brasil às nações amigas (entende-se, particularmente, a Inglaterra), do outro lado do oceano a história é de sufoco, com menos dinheiro circulando com a burguesia, uma reviravolta que a elite portuguesa não imaginava.
“O que é essa revolta do Porto? Esses comerciantes se revoltam porque Portugal está à míngua. Pouco dinheiro circulando. Caem impostos. Como o Brasil abriu os portos para Inglaterra, a elite comercial não atravessa mais as negociações com a colônia”, avalia o biógrafo.
O impacto também chegou aos tribunais de Lisboa e demais instituições que antes lidavam, na metrópole, com as burocracias da colônia. Afinal, o aparato jurídico havia mudado de terra junto a sede. “Eles sentem na pele o que o Brasil passou por 300 anos”.
A Revolução do Porto espalha-se por Portugal inteiro e acaba, na prática, com o regime absolutista. Ao serem criadas as cortes constitucionais, o rei perde o poder. A elite portuguesa no Brasil, que passava a experimentar uma liberdade diferente nos últimos 12 anos da chegada da família real, sente a mudança dos ventos.
200 anos de Revolução do Porto
Para o professor José Manuel Lopes Cordeiro, da Universidade do Minho, e pesquisador do período, a Revolta do Porto pode ser caracterizada como um “pronunciamento militar”, e não como uma revolução popular.
“Os militares saem do quartel e são lidas as proclamações para o novo regime. Raízes do sistema constitucional que vivemos em Portugal datam desse período”, disse à Agência Brasil em chamada de vídeo.
O assunto foi minuciosamente investigado pelo escritor portuense em obra lançada no mês passado em mais de 500 páginas. O livro 1820: Revolução Liberal do Porto foi escrito durante 15 meses com buscas a documentos inéditos sobre o episódio. “Procuramos dar uma visão abrangente do que aconteceu naquele ano, porque o pós 24 de agosto (de 1820) foi desprezado ou nem sequer abordado pela historiografia”.
Uma das descobertas trazidas à luz da história por José Manuel foi o Livro de Vereações (Livro de atas), que contém a posse da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino. “Ou seja, a fundação do regime liberal do país aconteceu na Câmara do Porto, em 24 de agosto de 1820. Sempre me surpreendeu porque é que esse livro de atas nunca foi mostrado e nem sequer é referido pelos historiadores”.
Por causa da passagem dos 200 anos do evento, o assunto tem atraído mais atenção da sociedade portuguesa. O pesquisador é o comissário responsável pela exposição sobre o tema no Museu Casa do Infante na cidade do Porto. A mostra começou em fevereiro, foi interrompida por três meses devido ao Covid-19, e está em cartaz até janeiro de 2021. Para o historiador, o furor absolutista está marcado para sempre no próprio livro de ata. Em reação contra os liberais naquele país, o livro de vereações foi rasurado com tinta corrosiva em uma tentativa de apagar os registros em uma reviravolta de lideranças absolutistas.
Ao mesmo tempo em que ocorrem as transformações liberais em Portugal, José Manuel Cordeiro considera que a sociedade brasileira encontra-se em uma “efervescência” cultural, política e ideológica”, além de já possuir uma infraestrutura de Estado. Os revoltosos na Europa reivindicam que Dom João retorne à metrópole. Em fevereiro de 1821, uma manifestação no Rio de Janeiro exige que o rei jure obediência à Constituição.
Os acontecimentos de 26 de fevereiro de 1821 traduzem o momento. Não se sabia qual seria a reação de Dom João VI. Foi a contragosto, segundo os historiadores, que o rei volta para Portugal intimado pela elite do seu país. Inclusive, ele chegou a anunciar que mandaria o filho Pedro para “ouvir as queixas” e tranquilizar os revoltosos. Nada feito. Quem retornou a Portugal foi o próprio Dom João IV.
Antes de zarpar, ele orientou o filho sobre a instabilidade entre coroa e colônia. Ao chegar em Portugal, João descobriu, da pior forma, que não é mais ele quem dava as cartas: precisava de autorizações para descer do navio e tomar decisões.
Na opinião da professora Teresa Marques, da Universidade de Brasília, a Revolta do Porto é um movimento que mostra o ressentimento e o mal-estar da elite portuguesa.
“O reino havia se tornado secundário nos domínios portugueses. Tanto que os portugueses ficaram incomodados com a manutenção de Pedro no Brasil”.
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