Já era noite de domingo, 14 de abril de 2019, quando um estrondo ecoou pelos bairros vizinhos ao condomínio Colina Verde, área nobre de Limeira, cidade de pouco mais de 300 mil habitantes a 140 km da capital paulista.
Uma explosão havia destruído o cômodo em que estava o engenheiro Rafael Henrique de Nadai, de 33 anos, na casa em que morava com os pais. Ele foi levado às pressas para o hospital, mas morreu com queimaduras que atingiram 70% de seu corpo.
De acordo com o 2º Distrito Policial de Limeira, que conduziu o inquérito que deve ser concluído ainda este mês, tudo indica que a explosão se deu no momento em que o engenheiro manuseava pólvora e outras substâncias na garagem de casa.
As investigações apontam que Nadai costumava fazer recarga doméstica de munições — prática que permite reutilizar uma cápsula depois que o projétil já foi deflagrado, preenchendo-a novamente com pólvora e tornando-a apta para um novo tiro. Ele tinha qualificação para tal: o engenheiro possuía certificado de registro no Exército para exercer atividades de colecionador, atirador desportista, ou caçador.
No cômodo destruído também foi encontrado um arsenal de 12 armas: pistolas de calibres 38, 45 e 22, revólver calibre 38, espingarda calibre 22 e uma carabina calibre 308, de uso restrito para tiro esportivo.
Nadai fazia tudo dentro da lei: ele era diretor de um clube de tiro e tinha autorização do Exército. O inquérito indica que haveria uma apresentação no clube no dia seguinte e, no momento da explosão, ele tentava fabricar um alvo pirotécnico, que produz efeitos sonoro e visual quando atingido pelo tiro.
“Escondida” em meio a uma série de decretos que mudaram regras sobre a compra e venda de armas e munições em 2019, entraram em vigor sem chamar muito atenção medidas que podem aumentar o risco de acidentes como o de Limeira e facilitar desvios para o crime, além de dificultar investigações. Um dos decretos elevou para 20 kg anuais por pessoa a quantidade máxima que cada colecionador, atirador desportista ou caçador pode comprar de pólvora — montante suficiente para fabricar 40 bombas caseiras, segundo especialistas.
Além disso, um dos decretos abriu a possibilidade de que os clubes de tiro vendam munição recarregada também a clientes; antes era só para associados. Uma diferença discreta, mas importante, segundo o professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, Rafael Alcadipani. “A relação dos clubes de tiro com o cliente não tem tanto rigor quanto com associados. Se você não tem experiência em tiros e faz um curso de uma hora, você já é cliente e pode usar essa munição recarregada lá por uma hora. E aí vai depender do controle de cada clube de tiro, se o Estado não controla, se você vai embora com a munição ou não”, diz.
A reportagem ouviu especialistas e analisou os decretos publicados no ano passado para responder: quais riscos a liberação de tanta pólvora e munição reaproveitada podem trazer para a sociedade?
O que é munição ‘caseira’?
Munição recarregada é aquela que, já deflagrada, volta a ser preenchida por pólvora manualmente, e passa a servir para novo tiro.
No YouTube, tutoriais mostram a prática feita de maneiras diversas; mais profissional, com uma prensa específica vendida na internet para atiradores habilitados, ou de maneira mais improvisada, com cortadores de unha, peças vendidas em material de construção e pólvora.
Episódios como o ocorrido em Limeira ilustram como são grandes os riscos para o ambiente quando mais pessoas estão lidando com grandes quantidades de pólvora em casa. Se até pessoas experientes e habilitadas podem sofrer acidentes com alto potencial destrutivo, o que pode ocorrer nas práticas mais amadoras?
“Recarregar munição, basicamente, é pegar o estojo, que é aquela parte de metal oca, e reaproveitar: colocar pólvora nova, espoleta e novo projétil, para atirar novamente”, explica Bruno Langeani, do Instituto sou da Paz. “Antes do governo Bolsonaro, já havia algumas categorias que podiam fazer recarga de munição. Agora está mais fácil”.
No Brasil, desde junho, a lei está mais liberal para experiências caseiras com pólvora. O presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto 9.846/2019 em 25 de junho, regulamentado em novembro pela portaria 136 do Comando Logístico do Exército, que amplia expressivamente a quantidade de pólvora permitida para a recarga de munição aos colecionadores, atiradores desportivos e caçadores, os chamados CACs.
Até 2018, atiradores tinham acesso a quantidades diferentes de armas e munição de acordo com seu grau de competição desportiva (de I a III), podendo comprar um máximo de 12 kg de pólvora por ano. Agora, qualquer atirador, independentemente de seu nível de instrução ou amadorismo, pode adquirir até 20 kg de pólvora por ano. O mesmo vale para caçadores, que tinham limite de 2 kg de pólvora: agora, também são liberados 20 kg por pessoa.
Dados reunidos pelo Instituto Sou da Paz apontam que, desde 2014, a concessão de registro de colecionadores, atiradores e caçadores cresceu 879% e essas categorias já possuem quase meio milhão de armas. O de registros para defesa pessoal cresceu mais de 130% desde 2010, sendo que atualmente no Sistema Nacional de Armas (Sinarm) o número de armas registradas já ultrapassou 1 milhão, por mais de 170 mil CACs registrados.
O que dá para fazer com 20 kg de pólvora?
“20 kg de pólvora seria quantidade suficiente para fabricar aproximadamente 40 bombas caseiras. E bombas com capacidade para estourar caixa eletrônico, esse tipo de crime que a gente vê cotidianamente”, alerta Ivan Marques, advogado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A preocupação é que a medida aumente expressivamente a quantidade de pólvora acessível a atiradores e facilite o acesso ao principal insumo para a fabricação de munições, e o único que tinha restrição mais rígida até o momento: a pólvora.
O decreto 9.846 também aumenta a circulação das munições recarregadas: autoriza os clubes de tiro a fornecerem também a clientes, que praticam tiros por lazer e sem compromisso com o clube, de maneira amadora ou mesmo por poucas horas. Antes, a venda era permitida só para associados, com certificado CACs.
Na estimativa do gerente da área de sistemas de justiça e segurança do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, 20 kg de pólvora é quantidade suficiente para produzir aproximadamente 40 mil munições por ano por pessoa. “À medida que você amplia essa quantidade e reduz o controle sobre essas munições recarregadas, você beneficia o mercado ilegal”, diz Langeani.
Na prática, na visão de especialistas em segurança pública da Fundação Getulio Vargas, do Instituto Sou da Paz, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, do Instituto Igarapé e do Ministério Público Federal ouvidos pela BBC News Brasil, tais medidas “implodem” o já deficiente sistema de rastreamento de munições no Brasil, além de aumentarem o chamado risco “ambiental”, em que mais pessoas poderão ter grandes quantidades de pólvora e causar explosões domésticas.
Menos controle e mais risco de desvio para o crime
“Agora nada impede que o crime organizado monte um clube de tiro de fachada para encher a munição para ele. Não é muito difícil criar um clube de tiro de fachada. O que significa, na prática, é que o governo está liberando a possibilidade de o crime organizado se municiar, sem nenhuma repressão”, explica Rafael Alcadipani, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP), que diz que poder utilizar munição recarregada em cursos e eventos é uma demanda antiga dos clubes de tiro.
“Os clubes de tiro fazem uma cápsula com menos pólvora porque fica mais barata para eles. Imagina se em vez de fazer uma munição por R$ 10 você fizer por R$ 8, ou R$ 3. Reduz o custo”.
O decreto 9846, em vigor desde junho, também liberou que a munição recarregada seja vendida em todos os clubes de tiro do país; em tese com fiscalização do Exército, mas que, na prática e na rotina dos clubes de tiro, acaba ficando a cargo de cada instituição.
Na hipótese de um cliente sair de um clube de tiro carregando a pólvora, além disso, ele tampouco será reprimido: uma outra regra decretada no ano passado agora permite que os CACs transportem armas com munição do clube de tiro até em casa, em “qualquer itinerário realizado, independente do horário”, mesmo que esteja em trajeto diferente de tal rota casa-curso. “Ou seja, um porte camuflado a qualquer CAC, eliminando o efeito da exigência de registro por 2 anos como atirador desportivo”, diz o Instituto sou da Paz.
A BBC News Brasil entrou em contato, por telefone, com diversos clubes de tiro, inclusive em Limeira, mas não encontrou nenhum representante disposto a comentar as medidas e saber como as mudanças estão influenciando a prática dos atiradores CACs. Enviou também uma série de perguntas sobre como funcionará a fiscalização dos clubes de tiro ao Comando Militar do Exército, que respondeu apenas que “compete ao Exército Brasileiro a fiscalização de produtos previstos em legislação que regula o assunto, e que o Exército cumpre o que prescreve os dispositivos legais vigentes no país”.
“A pólvora é um material explosivo, o que pode gerar acidentes graves em sua manipulação, sobretudo se considerarmos a falta de medidas voltadas para o aperfeiçoamento do controle e fiscalização da produção, comércio e circulação desses insumos”, afirma Michele dos Ramos, assessora especial do Instituto Igarapé.
Mais munição sem rastro, mais crimes sem pistas
Para Ivan Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a facilitação de acesso a pólvora e a liberação da recarga de munição para atiradores irão piorar um problema que já existe no Brasil: a dificuldade de rastreamento de munições utilizadas em um crime.
“Quando você dá a possibilidade tanto de clubes de tiro quanto particulares comprarem os insumos para produção dessa munição [como o desvio para o crime organizado] essa é uma munição que não tem rastreabilidade. Ou seja, no caso do mau uso dessa munição, é virtualmente impossível saber a sua origem e elimina um pedaço importante da investigação criminal”, diz.
Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz, explica que, atualmente, como no país só existem as fábricas de munição da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), localizada em Ribeirão Pires, todas as compras ficam registradas. No caso das forças de segurança pública, existe um fator a mais: a regra que obriga polícias e Forças Armadas a comprar munições com marcação de lote nas cápsulas das balas, obrigação que também pode ser derrubada pelo Congresso.
“Na época da aprovação [do Estatuto do Desarmamento] a sociedade civil queria a obrigatoriedade da marcação das munições para todos, mas o lobby da indústria das armas não deixou. Mas mesmo sendo só para as forças públicas de segurança isso já ajudou a esclarecer vários crimes e identificar vários desvios”, afirma.
Langeani destaca que, a exemplo das regras para a compra de pólvora e munição recarregada, muitas mudanças na lei foram feitas de maneira confusa e pouco transparente no ano passado. “A regra para a compra de armas por civis foi alterada de forma substancial ao menos 3 vezes só em 2019. Cabe lembrar que a regra anterior vigorou de 2004 a 2018”, diz, tornando difícil até para quem fiscaliza e controla a venda de armas e munições entender o que está valendo.
Por mais de 15 anos as regras para controle de armas e munições (posse, porte, armas permitidas e proibidas, comércio exterior, etc.) vigoraram com poucas alterações, concentradas em uma só lei, explica Langeani.
“O Estatuto do Desarmamento (lei 10.826/2003) tinha apenas um regulamento, como é a praxe para a regulamentação de leis, facilitando consulta e entendimento de cidadãos e operadores do sistema de justiça e segurança”, diz. “Após a entrada do governo Bolsonaro foram 8 decretos publicados, sendo que 4 ainda seguem em vigor”, diz Langeani.
A página da diretoria de fiscalização de produtos controlados do Exército Brasileiro, por exemplo, está com sua página de Perguntas Frequentes “em construção” desde o 1º semestre do ano passado. O site da Companhia Brasileira de Cartuchos, que detém praticamente o monopólio da produção de munições no Brasil, ainda apresenta como legislação vigente a lei de 2004, do Estatuto do Desarmamento.
“Essa série de decretos criou uma insegurança jurídica enorme. Se para nós está confuso, imagina um policial na rua que apreende alguém com uma pistola 9mm, que até então era restrita, e agora foi liberada em decreto?” exemplifica Ivan Marques.
É difícil comprar material para fazer munição em casa?
Na internet, uma série crescente de tutoriais na internet ensina a fazer recarga caseira de munição.
Um dos vídeos encontrados pela reportagem, por exemplo, ensina a fazer munição recarregada usando um cortador de unha, uma peça de chumbinho e um palito de fósforo. No vídeo com 45 mil visualizações no YouTube, de título “Como fazer uma munição caseira”, as mãos de um homem que não se identifica cutucam uma cápsula para munição com o palito de fósforo.
“Neste vídeo trago para vocês uma forma barata e prática para fabricar munição de 22, usando finca pino. O finca pino você encontra em lojas de gesso e a caixa com 100 deve custar cerca de R$ 30”.
No vídeo, o “instrutor” diz que também é possível cutucar a pólvora na cápsula usando um parafuso, mas alerta que a alternativa é ainda mais arriscada. “Por que como é ferro, causa mais atrito e pode causar uma explosão. Um amigo meu já fez isso, explodiu na mão dele a bala. Mas não deu muito grave não porque ele estava usando equipamento de proteção. Se você tiver uma luva para usar, melhor”, diz ele, que nas imagens trabalha sem nenhuma luva, explicando a origem dos chumbinhos utilizados na fabricação.
“Isso aqui [o chumbinho] é de fazer balanceamento de carro. Eles vendem esse chumbo, na maioria das vezes o balde de chumbo, mas aqui o cara só me deu um pouquinho. Mas esse pouquinho que ele me deu dá para fabricar no mínimo, umas 50 balas. E saiu de graça para mim”.
O método mais tradicional e seguro de recarregar munições em casa é utilizando uma prensa de recarga de munição, cuja venda atualmente é restrita a compradores autorizados, mas que são fáceis de achar na internet. Também na rede há uma série crescente de vídeos de atiradores esportivos que ensinam a manusear os equipamentos mais sofisticados em tutoriais bem didáticos.
Uma breve busca em sites na internet mostra que as matérias-primas e equipamentos para a fabricação de munição caseira já são fáceis de serem compradas: cápsulas, espoletas, e até as prensas para recarga, como são chamados os equipamentos usados especificamente para inserir a pólvora e reaproveitar as munições.
“Ainda não são muitos sites que vendem os insumos, as cápsulas, as espoletas, mas em poucos minutos já achei três sites do sul do país”, diz Marques, do Fórum de Segurança Pública.
No site da Companhia Brasileira de Cartuchos, que é uma das maiores fabricantes de munição do mundo, é possível encontrar absolutamente qualquer parte da munição para compra direta. “O que eles exigem é que você preencha seus dados e informe em que categoria da lei você se enquadra — caçador, colecionador, atirador, clube de tiro — mas você consegue comprar qualquer insumo”, diz Marques.
“Além de dificultar o próprio controle do mercado de pólvora, mais munições recarregadas em circulação facilitam desvios para a criminalidade, dificultando a investigação de crimes envolvendo armas de fogo”, diz o Instituto Igarapé.
Alcadipani, da FGV, diz que comprar pólvora, principal matéria-prima da munição, é ainda mais fácil e requer zero identificação. “Vende-se desde em casa de umbanda até loja especializada, é muito fácil comprar pólvora”. A diferença é que, a partir da liberação em lei, uma fábrica de munição ilegal poderá disfarçar-se de atirador autorizado.
“Já existem fabriquetas de munição do crime organizado, mas você chega lá na fabriqueta e prende todo mundo, porque é ilegal. Agora, a partir das novas regras, se eu crio uma fabriqueta agora eu posso falar que é minha, que eu tenho autorização para tiro esportivo e fazer uma coisa de fachada.”
Para Marlon Alberto Weichert, procurador federal dos Direitos do Cidadão adjunto do Ministério Público Federal, tais medidas são armadilha para os próprios profissionais da segurança pública, dando ao crime acesso mais fácil e barato a munição, pólvora e armamento.
“Nos parece que há uma facilitação de criação de uma estrutura paramilitar no Brasil “, diz, citando as milícias que já operam no Brasil, mas que tornariam-se muito mais poderosas com mais poderio bélico. “A milícia é um fenômeno de paramilitarismo. Começa no Rio de Janeiro, mas já têm um processo de expansão nacional, então a partir da estrutura do Estado você tem pessoas que se envolvem com as milícias e, quando você facilita que adquiram armas, está facilitando que esse armamento se transfira para essas milícias.”
Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, concorda que os decretos facilitam o desvio de armas e munições para o crime organizado. “Em um caso como o (assassinato) da Marielle e do Anderson, por exemplo, vai ser encontrada na cena do crime uma munição feita em casa, que pode ter sido feita por qualquer pessoa. É a cápsula, o chumbo e a pólvora. O que fica na vítima do crime é o chumbo. E muitas vezes as armas mais modernas disparam muitas munições por vez. E aí essa cápsula também é ejetada da arma e, muitas vezes, fica na cena do crime, que foi exatamente o que aconteceu no caso Marielle. Se você tem um estojo comprado na fábrica, ela vem com uma marcação específica. E é isso que deixa mais fácil as investigações para a polícia.”
Para o advogado, a flexibilização do controle nas vendas e fabricação de munição abre espaço para muitos tipos de práticas muito mais perigosas e em nada relacionadas ao tiro esportivo.
“Ninguém chega em uma loja e compra dinamite no balcão. Ninguém compra dinamite pela internet. Liberando a munição, ou insumos como a pólvora, a gente abre essa porteira e seja o que Deus quiser.”
Informações do Site BBC News