É fácil notar que não são convergentes as posições dos governantes sobre a melhor estratégia pública a ser adotada para evitar a propagação da doença e, concomitantemente, minimizar as suas consequências no plano econômico.
Em tempos de pandemia do Coronavírus, muito se comenta sobre o crime de infração de medida sanitária preventiva, previsto no art. 268 do Código Penal. O delito consiste em “infringir determinação do poder público, destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa” e possui pena de detenção de um mês a um ano além de multa.
Doutrinariamente, trata-se de crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa; de perigo abstrato, pois o prejuízo ao bem jurídico “Saúde Pública” é presumido; de mera conduta por prescindir de qualquer resultado naturalístico tangível aos nossos sentidos.
Não bastasse, cuida-se de um tipo penal que depende de complementação para sua exata definição, chamado, pela doutrina, de norma penal em branco tal norma possui conteúdo indefinido e apenas esboça o conteúdo do injusto que estará na dependência de complementação por outro ato normativo pertencente ao ordenamento jurídico. A lei penal, nesses casos, deve ser interpretada em conjunto com o ato normativo complementar para permitir sua exata compreensão e produzir efeitos jurídicos.
A caracterização do crime descrito pelo art. 268 do Código Penal é dependente de um ato normativo que complemente a elementar normativa “determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.
Atualmente, pensamos que o ato normativo complementar que estabelecerá a conduta incriminada não pode ficar, em tese, a cargo de todos os entes federativos brasileiros e necessita de definição por meio de ato normativo de abrangência nacional a ser editado pelo Ministério da Saúde, ou por outro órgão público de caráter nacional, como a ANVISA.
Não se pode permitir que cada município e Estado brasileiro possa editar um ato normativo (lei ou decreto) relacionado à situação da pandemia atual e assim, valendo-se do disposto no art. 268 do Código Penal, ameaçar com pena criminal – e todas as suas nefastas conseqüências – os seus habitantes e eventuais visitantes, sob pena de violação do princípio da legalidade e sua consectária segurança jurídica.
Além do que, “a determinação do poder público” local pode ser alterada ou simplesmente inexistir em outro município contíguo, ou ainda possuir conotação contrária à de outro ente federativo, configurando comando penal indeterminado, com vigência territorial limitada (eventualmente, limitadíssima) e, por vezes, contraditório.
É fácil notar que não são convergentes as posições dos governantes sobre a melhor estratégia pública a ser adotada para evitar a propagação da doença e, concomitantemente, minimizar as suas consequências no plano econômico.
Em decorrência disso, diversas leis e decretos dispares podem ser editados acerca do tema e a população não merece ficar à mercê do entendimento do governante local sobre a melhor forma de proceder em relação à pandemia e seus efeitos para pautar seu comportamento e não ser punido criminalmente.
Observe-se que a Constituição Federal consagra “privativamente à União” a competência para legislar sobre direito penal (art. 22, I), não estando autorizados os demais entes federativos (Estados e municípios) a complementar um ato normativo próprio do poder federal que implique em reflexos na legislação penal.
Evidente que o julgamento cautelar do Supremo Tribunal Federal, que referendou a medida cautelar implementada pelo Ministro Marco Aurélio e reconheceu a legitimação concorrente da União, Estados e municípios para legislarem sobre aspectos relacionados à Pandemia do Coronavírus (ADIn 6341-DF, Rel. Min. Marco Aurélio), não permitiu a incriminação direta ou indireta de comportamentos por atos normativos locais (leis, decretos etc).
Cediço que a responsabilização criminal exige comprovação de elemento subjetivo por parte do agente criminoso, no caso o dolo, além de demonstração da consciência da ilicitude do comportamento o que impediria, por certo, condenações abusivas. Porém, ainda assim, muitas pessoas seriam detidas – não presas, pois o delito do art. 268 do Código Penal enquadra-se no conceito de infração de menor potencial ofensivo – e constrangidas a comparecer à presença de autoridade policial para adoção dos procedimentos relacionados à apuração criminal.
Igualmente, sabe-se que o Direito Penal é considerado a ultima ratio do ordenamento jurídico, com aplicação subsidiária. Neste sentido, cabe destacar a previsão de punição administrativa (advertência ou multa) aos comportamentos que impeçam ou dificultem a aplicação de medidas sanitárias relativas às doenças transmissíveis (art. 10, VII, da Lei 6.437/1.977). Punição que se apresenta, em nosso sentir, mais adequada e proporcional do que a rigidez de uma resposta penal.
Em síntese, relevando os princípios da legalidade e da ultima ratio, pensamos ser incabível a utilização das normas relacionadas à Pandemia do Coronavírus, editadas pelos diversos municípios, Estados ou Distrito Federal, como integradoras da figura típica do art. 268 do Código Penal.
*Fernando Brandini Barbagalo é juiz de Direito do TJDFT e professor de direito penal e processo penal
Informações do Site TJDFT – Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios