No Brasil, a mesma sociedade que pede o fim da Polícia Militar em manifestações, alarmada pelos índices de violência policial, acha que “bandido bom é bandido morto”.
Para a secretária nacional de Segurança Pública, Regina de Luca Miki, tal “distorção” explica a relação conturbada do brasileiro com as instituições que devem protegê-lo.
“A relação (entre Polícia Militar e sociedade) se perde lá atrás. É uma polícia formada pela ditadura, que vem buscando seu caminho hoje, mas por outro lado é cobrada pela própria sociedade para que aja com violência, daí fica uma distorção”, afirmou a secretária em entrevista à BBC Brasil durante visita a Londres.
Segundo os dados mais recentes disponíveis, uma pessoa é morta pela polícia no Brasil a cada três horas. Foram 3.009 mortes em 2014, aumento de 37% em relação ao ano anterior. E 398 policiais foram mortos naquele ano, ao menos um por dia.
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Nos EUA, por exemplo, país com número muito superior de armas de fogo em circulação e com população 60% maior do que a brasileira, o total de civis mortos pela polícia em 2012 foi de 410, ante 1.890 no Brasil no mesmo período.
A preocupação com a violência na ação policial se reflete nas ruas. Ao menos desde 2013, gritos de guerra pedindo o fim da PM são comuns em protestos pelo país, seja em atos contra a especulação imobiliária no Recife, em solidariedade aos professores em Curitiba ou pela revogação do aumento das passagens em São Paulo.
Por outro lado, metade da população das grandes cidades brasileiras acredita que “bandido bom é bandido morto”, como mostrou pesquisa Datafolha em julho de 2015. Ao todo, 50% dos entrevistados disseram concordar com a afirmação, 45% discordaram e o restante não respondeu ou não concorda nem discorda.
No cargo desde 2011 e conhecida pelo período em que comandou a segurança em Diadema (SP) e a cidade reduziu sua taxa de homicídios em 78% (de 2001 a 2008), Miki diz acreditar em uma “polícia em que os direitos humanos prevaleçam”.
“Tenho o prazer de comandar uma instituição que nunca cometeu um crime contra a população, apesar de trabalhar em situações de crise”, afirmou, em referência à Força Nacional de Segurança, criada em 2004 para atender situações emergenciais nos Estados.
Homicídios
Relatório lançado pela ONU em 2014 apontou que 10% dos homicídios do mundo são cometidos no Brasil e que o país concentra 21 das 50 cidades mais letais. Foram 53.240 vítimas de homicídios dolosos no país naquele ano – uma pessoa assassinada a cada dez minutos -, e o governo federal até hoje não tem um diagnóstico preciso sobre as causas desse fenômeno.
Esse é o motivo, afirma Miki, pelo qual o chamado Pacto Nacional de Redução de Homicídios, promessa de campanha de Dilma em 2014, ainda está nos primeiros passos.
A ideia, que começou a ser discutida no Ministério da Justiça em dezembro de 2014, era buscar uma meta de redução de 5% nos homicídios por ano, com foco nos 81 municípios mais violentos, novas campanhas de desarmamento, entre outras ações.
A suposta lentidão vem sendo alvo de críticas de especialistas do setor.
“De qual dificuldade padece o Ministério da Justiça para justificar sua incapacidade em liderar um movimento nacional em prol da vida?”, questionaram, em artigo recente, Samira Bueno e Humberto Viana, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec/Ucam), fez coro em outro texto recente: “Infelizmente praticamente nada aconteceu. Para além de atividades técnicas pontuais, o governo patina e deixa dúvidas: será que a crise política inviabilizou mesmo o plano ou será que o governo federal jamais teve, de fato, coragem para assumir e cobrar dos governadores compromissos efetivos para modernizar a segurança pública e reduzir a violência?”
A secretária nacional de Segurança diz que o governo está trabalhando no pacto e que há inquietação no meio acadêmico pois “as ações são imperceptíveis porque são diagnósticos”. “São coisas importantes que não temos no Brasil. Você não tem um estudo da motivação do crime de homicídio até hoje no país”, afirmou.
“Nosso menor problema é o anúncio (oficial do pacto, que ainda não ocorreu). O maior problema é sabermos exatamente onde agir para atingir a meta”, disse a secretária.
Segundo ela, também já houve liberação de recursos para criação de centros integrados de controle, nos moldes dos que funcionaram na Copa do Mundo, em Goiás e Santa Catarina. “E estamos com pesquisadores no Nordeste fazendo microdiagnósticos nos 34 municípios mais violentos, para saber quais as intervenções além das policiais devem ser feitas.”
Qualidade dos dados
Outra iniciativa federal em segurança sob questionamento é o Sinesp (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública), base criada em 2012 para integrar informações e subsidiar políticas em segurança.
Em 2011, quando o sistema estava em elaboração, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, chegou a afirmar que o Estado que não informasse suas ocorrências policiais sofreria corte nos repasses de verbas da União para segurança.
Especialistas citam, por exemplo, que o sistema não apresenta dados confiáveis, e que houve erros graves – como a omissão de 3 mil homicídios – no relatório mais recente.
“O sistema funciona, o que falta é o Estado alimentar corretamente. Quem alimenta (o sistema) não é o governo federal”, afirmou Miki.
Sobre a padronização ainda insuficiente dos dados, a secretária disse lamentar a não aprovação, pelo Congresso, da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 33, que daria ao governo federal o poder de organizar os registros criminais no país.
“Já foi estimulada (a padronização dos dados), mas o Estado é autônomo. Tenho Estados no Brasil que registram ocorrências, e não vítimas. Não tenho como obrigá-los. Mesmo assim o Sinesp já produziu muito, temos mapas de criminalidade e o Sinesp Cidadão é um dos aplicativos de melhor avaliação (…), mas a qualidade dos dados depende da qualidade do registro dos Estados.”
Marca do governo
Promessas do governo Dilma em segurança acabaram sendo reformuladas ou ainda estão incompletas – a intenção anunciada em 2010 de construir 2.800 postos comunitários de segurança inspirados nas UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) do Rio, por exemplo, acabou não saindo do papel.
“Percebemos que a construção nesse número era inviável, porque iríamos retirar da circulação da rua aproximadamente um terço de todo o efetivo de policiais do país”, disse Cardozo em entrevista à Folha de S. Paulo em 2012.
No ano passado, a BBC Brasil mostrou que o projeto federal dos chamados “ônibus do crack”, iniciativa que recebeu parte dos recursos originalmente destinados aos postos comunitários, estava prejudicado: prefeituras receberam os micro-ônibus para apoiar o combate ao tráfico e ao uso do crack, mas, por atraso em licitação, uma parte dos veículos chegou sem câmeras destinadas a monitorar as cracolândias.
Para a secretária nacional de Segurança, são questões pontuais que não comprometem os resultados gerais do Planalto no setor.
“Aí (parece que) está tudo errado, o que não é verdade. A grande marca é a integração. Fizemos grandes eventos, e essa é a nossa competência”, disse.
Miki afirma ser preciso deixar “muito claro” que a competência federal em segurança pública é a “indução da política”.
“Capacitação, equipamentos para melhorar as condições do profissional na ponta e integração das polícias. Os grandes eventos nos mostram isso. As integrações têm funcionado. E até não termos a mudança constitucional necessária para que a participação federal seja mais ampla, a grande marca será a integração.”
Fonte: BBC