Mais de quatro anos após o início da implementação das audiências de custódia no Brasil, a maioria dos presos (57%) continua sendo enviada ao sistema prisional pela Justiça por meio da prisão preventiva. Em apenas 0,89% dos casos, a pessoa tem liberdade irrestrita para responder ao processo, ou seja, sem precisar cumprir nenhuma medida cautelar. Os resultados fazem parte do relatório O Fim da Liberdade, divulgado nesta quinta-feira (29) pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
Segundo o vice-presidente do IDDD, Hugo Leonardo, no Brasil, a regra constitucional é a liberdade: a pessoa só pode ser presa cautelarmente em uma medida excepcional, mas a política adotada pelos estados tem sido de inseri-la nas penitenciárias. “Insere-se o sujeito no sistema para depois decidir se o statusconstitucional dele de liberdade vai permanecer, ou não – é uma lógica absolutamente inversa à que deveria vigorar.”
Depois de analisar 2,7 mil casos em 13 cidades de nove estados, o IDDD concluiu que a liberdade concedida nas audiências é uma exceção, diferentemente do que determinam a legislação e as normas internacionais. De acordo com o relatório, a imposição de medidas cautelares ocorre ainda de maneira generalizada, muitas vezes sem se adequar aos casos específicos, além de impor controle estatal até a pessoas acusadas de pequenos crimes sem violência, como furto e tráfico de drogas.
Em 2,17% das audiências de custódia, foi concedido o relaxamento da prisão, o que significa que o flagrante foi considerado ilegal, como, por exemplo, quando há violência policial. O restante (40,4%) teve a liberdade provisória decretada, porém com medidas cautelares.
“Os resultados indicam que há uma distorção alarmante naquela que é a porta de entrada no sistema penal [audiências de custódia] e que elas precisam recuperar o seu propósito inicial, de limitar o uso da prisão preventiva”, disse Leonardo. Para o advogado, o estudo mostrou que as decisões do sistema criminal são “desfundamentadas”, carregadas da opinião do magistrado, na maioria dos casos, e carecem de informações do próprio custodiado.
A cidade de São Paulo apresentou um dos balanços considerados mais críticos pela entidade, já que não houve nenhuma concessão de liberdade provisória sem imposição de medidas cautelares no período do estudo – de abril a julho de 2018 – e 65% dos casos resultaram em prisão preventiva.
Segundo Leonardo, a justiça criminal está sendo usada como um controle social de determinada parcela da população. “Há um movimento claro e bem-sucedido no sentido de acabar com a liberdade irrestrita, e os operadores do sistema de Justiça precisam ter clareza dos impactos nefastos dessa tendência a médio e longo prazo para toda a sociedade, e de maneira especialmente perversa para a população negra.”
Racismo
O relatório mostra que em 64,1% dos casos analisados, os custodiados são negros e, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estratística (IBGE), o percentual de população negra nas cidades pesquisadas é de 47,1%. Na cidade de Porto Alegre, o percentual de pessoas negras que passam pela audiência de custódia (41%) é duas vezes maior que o da população negra local (20%).
“O racismo é um marcador de desigualdade também no sistema de Justiça. Mais negros do que brancos chegam às audiências de custódia e os dados levam à conclusão de que eles têm menos chances de receber liberdade provisória em função dos tipos de crimes pelos quais são presos – como, por exemplo, os crimes patrimoniais ou de tráfico”, acrescentou.
Em 70% dos casos, as pessoas são acusadas de crimes não violentos, como furto e tráfico de drogas. O tráfico representa quase um quarto de todos os casos (23,8%). Para Leonardo, o crime de tráfico de drogas, suas altas penas e o seu espraiamento na sociedade com todos os problemas sociais que há hoje no país tem dimensão política. “É uma decisão política prendermos, como estamos prendendo, é uma decisão política a prisão a partir de crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa, é decisão política haver quase 800 mil presos no Brasil, e é decisão política sermos a terceira maior população carcerária do mundo. E é uma opção política estarmos crescendo na maior velocidade no número de presos no Brasil”, disse o advogado, que considera “absolutamente falida” a legislação brasileira de combate às drogas.
“Não parece que isso contribua para uma diminuição dos crimes, mas é uma verdade em que a prisão de jovens, negros, pobres fornece o que as facções criminosas gostam: fileiras, mão de obra, vasto material para que a verdadeira criminalidade violenta tenha curso livre na nossa sociedade”, afirmou.
Tortura
Segundo o IDDD, o potencial das audiências de custódia para prevenir e combater a tortura está sendo desperdiçado. Para Hugo Leonardo, os “olhos” da Justiça precisam estar apurados para identificar casos de tortura e para que eles sejam de fato levados em consideração.
Na opinião do advogado, o Brasil é “um país leniente com a tortura” e tem “um Judiciário leniente com a tortura”, além de uma política criminal “pessimamente gerida”. Em apenas 0,9% dos casos de relatos de violência, houve instauração de inquérito por parte do juiz.
A Polícia Militar é apontada como responsável pelas agressões em 75,6% dos casos de relatos de violência. Em 74% das vezes, não houve qualquer pedido de encaminhamento do relato de violência pelo Ministério Público e, em 72% dos casos, não houve encaminhamento por parte da defesa.
Leonardo apontou três problemas fundamentais: falta de um ambiente propício e acolhedor para receber relatos de violência; falta de decisões que reconheçam a violência policial como elemento que torna o flagrante ilegal e falta de engajamento do Ministério Público, da Defensoria e da Magistratura no encaminhamento das denúncias.
“É comum ouvirmos que o relato de tortura é usado pelas pessoas custodiadas para forçar o relaxamento da prisão em flagrante, mas os números mostram é que isso é falso. Houve apenas cinco casos, em um universo de quase 3 mil, em que a violência policial é reconhecida como um elemento que contamina de ilegalidade a prisão em flagrante – e vale destacar que, em apenas dois, a violência policial foi o único motivo do relaxamento”, disse.
O advogado destacou ainda o costume de aceitar-se a palavra do policial como única prova. “Nos crimes de tráfico, por exemplo, 90% dos casos tinham como único elemento da acusação a palavra dos agentes envolvidos na abordagem.”
Informações da Agência Brasil