O problema existe. Ou melhor: os problemas existem. E ambos são questões de cor. Mas o que acontece quando se faz parte dos dois lados do que se discute e é necessário trazer a solução para ambos? Foi exatamente nesse cenário em que me vi, e que agora trago sob uma visão transparente, isenta e com muito conhecimento de causa.
Entre maio e junho de 2020, foi reaceso um embate que sempre traz o aspecto cru das relações sociais travadas por dois grupos, ou dois P’s, historicamente complexos: pretos e policiais. De um lado, fomos trazidos a discutir o movimento legítimo, envolvendo manifestações depois da trágica morte do americano George Floyd. De outro, a criminosa atuação de um empregado do Estado, sem qualquer desculpa que se considere aceitável.
Apesar de poder ser considerada como surpresa, a menção aos dois Ps é exatamente como vocês a leram.
Quando falo de pretos e policiais, esmiuço a dúvida que sempre surge e que todos ficam cheios de dedos para perguntar. É preto mesmo, por se tratar da cor da pele. Negro é quando falamos da etnia, da raça. E relaciono intencionalmente com policiais porque é exatamente aí que está a convergência dos P’s. O que muda é que, no segundo grupo, a pele se chama uniforme.
O encontro das “peles”, aos olhos da população, se dá pela presença da violência. Começando pela violência contra a cor da pele humana e, depois, alcançando, mesmo que de forma discutível e conturbada, a cor da segunda pele, chamada de uniforme. Será que temos noção do quão estranho é falar de dois grupos de seres humanos? E termos que separá-los entre os cobertos pela cor da pele e os que são cobertos pelo tipo de uniforme? Mas se a discussão é essa, vamos a ela.
De onde saem os dois grupos? Comecemos por aqui. Os membros da raça negra que, segundo o IBGE, agrega quem se classifica como preto e pardo nas pesquisas, unem-se pelo preconceito, pelo racismo e pela discriminação. Seguindo um breve resumo das definições, somos preconceituosos quando classificamos alguém usando dados generalizados, pouco fundamentados e que insistimos em não enxergar de forma diferente; racistas quando pensamos ser superiores a outras etnias, por quaisquer que sejam as nossas características e, finalmente, discriminadores.
É chegada a hora em que todos nós afastamos classificações e pensamentos. Efetivamente agimos. Usamos, sim, as duas primeiras considerações para tornar nossos comportamentos realmente injustos, tratando outros indivíduos de forma negativa, pela idade, preferência sexual ou, nesse caso, pela cor da pele. E há total necessidade de partirmos desses esclarecimentos para compreendermos tanto a violência policial como violência de manifestantes. Mas algo mais carece ser inserido nesse pensamento, se desejarmos mudar o que ocorre em nosso país. O 4o. elemento chama-se violência estrutural. E fica longe de ser violência de manifestantes ou da polícia.
A diferença está no seguinte: violência estrutural não tem cor. Ela acontece quando determinada porção de indivíduos de uma sociedade são mais vulneráveis ao sofrimento e a morte, tudo provocado por aspectos políticos, econômicos, jurídicos, sociais e até normas familiares. E que eu me lembre, nenhum desses últimos tem cor definida. Mas há um quesito fundamental: os mesmos aspectos incolores influenciam, e muito, na construção de todos os protocolos que fazem parte do desenho operacional das instituições policiais. Começa a ficar mais claro que o tal problema recosta nos ombros de gestores, políticos e governantes, distanciando-se cada vez mais dos que usam farda.
Na outra ponta da linha estão mais de 110 milhões de brasileiros, da raça negra, e que carecem dos serviços prestados por um sistema que provoca um sufocamento silencioso e invisível. Esse sufocamento não deve ser traduzido como Mi-Mi-Mi e muito menos como preguiça. O olhar do Estado para essa parte da sociedade chega por intermédio de escolas ruins, ônibus lotados e baixíssima representatividade nas áreas de destaque nacional. Reconheçamos que não ver médicos negros – a não ser no BBB – não ver engenheiros negros, não ver empresários negros, não ver ministros negros, não ver milionários negros é a realidade do nosso país.
Para alguns, parece mesmo ser muito melhor continuar a não ver. Mas quando entram em campo a violência seguida da morte, a invisibilidade é quebrada quase que imediatamente. As manifestações trazem muito disso em sua voz. O racismo, a discriminação e o preconceito do país de Floyd, nem de longe, são os mesmos do Brasil. Policiais indignos de usarem uniformes, os do tipo que matam Floyds, também não podem ser confundidos com policiais do nosso país. Falo de cadeira. Afinal, comecei minha experiência junto à ONU em 1997, ministrando aulas para policiais da Ásia, Europa e das Américas. Sendo negro e também policial.
Negros brasileiros sofrem, sim, com os tratamentos que recebem. O que se deseja saber é como mudar o cenário atual. Seria gerando mais possibilidades – criando verdadeiras e competentes lideranças – a quem se vê como preto? Ou seria reduzindo gradativamente as “oportunidades” – pequenos cala-bocas temporários e sem qualquer resultado de longo prazo? Ao tratar do preconceito e da violência policial, a luz no fim do túnel deve iniciar a jornada com base na cor da farda ou na cor da pele? O que você acha agora?
Mas para resolver esse quebra-cabeças só preciso lembrar de uma única regra: a farda pode ser retirada ou substituída. A cor da pele não.
*Leonardo Sant’Anna, atuou por 28 anos na PMDF. Foi consultor de segurança internacional em diversos países. Autor do livro Quem mexeu na minha segurança, e realizou treinamentos para corporações como o Bope e cedeu gentilmente o artigo para publicação no Policiamento Inteligente