Era para ser um conto com final feliz, mas o projeto que levaria cultura e fortalecimento da leitura a 7.812 crianças matriculadas em 50 escolas públicas do Distrito Federal caminha para se tornar mais um exemplo de mau uso de dinheiro público. Cinco contratos firmados entre a Secretaria de Políticas para Crianças, Adolescentes e Juventude (Secriança) com duas entidades – o Instituto Terra Utópica (ITU) e o Instituto Brasília para o Bem-Estar do Servidor Público (Ibesp) – hoje são investigados por uma série de irregularidades e revelaram-se um conto do vigário.
O total de repasses chegou a R$ 5.081.947,37, sendo R$ 1,9 milhão disponibilizado por meio de emendas parlamentares de Israel Batista (PV) em 2016, quando o hoje deputado federal era distrital.
Um dos exemplos descobertos durante as apurações de órgãos de controle é absurdo: a compra de bonecas de pano pelo valor unitário de R$ 4,9 mil. A Secriança repassou R$ 24,5 mil ao Instituto Terra Utópica, responsável pelo projeto, para a aquisição de cinco brinquedos. O dinheiro fazia parte das iniciativas previstas pelo ITU para implementar o Sara e Sua Turma, uma atividade paradidática em escolas da rede pública.
Ainda em relação ao ITU, outro caso que despertou a atenção dos investigadores é a cifra informada como correspondente ao pagamento de contadores de história. A entidade informou ter desembolsado R$ 48 mil por 11 dias de serviço de dois profissionais. Os R$ 24 mil que cada um deles supostamente recebeu é 380% maior do que o salário mensal de R$ 5.016,52 pago a um orientador educacional concursado da Secretaria de Educação para trabalhar 40 horas semanais.
Os dados constam em Relatório de Inspeção da Controladoria-Geral do DF (CGDF). O documento, de 48 páginas, começou a ser elaborado três meses antes de a Polícia Civil do DF (PCDF) e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) deflagrarem a Operação Conto do Vigário, em dezembro de 2018, e foi concluído em março deste ano. A ação teve como foco justamente os contratos entre a Secriança e os dois institutos.
Redações
No caso do Ibesp, entre as supostas irregularidades identificadas está o contrato para a realização do concurso de redação em escolas da rede pública em três regiões administrativas: Taguatinga, Ceilândia e Guará, no valor de R$ 989.667,82. Essa mesma iniciativa foi alvo das investigações da PCDF e do MPDFT.
Segundo a CGDF, quando o contrato com a Secretaria da Criança foi assinado, não havia sequer prestação de contas de serviço anteriormente celebrado. Além disso, houve ausência de documentação comprobatória da execução do projeto nos moldes propostos. Uma série de itens obrigatórios, como adesão das instituições de ensino, lista de presença de alunos, contratação de serviços de transporte, alimentação e profissionais, entre outros, tampouco foram apresentados.
As suspeitas da CGDF incluem desvio de dinheiro e má execução das emendas parlamentares, além de indícios dos crimes de estelionato majorado, associação criminosa e peculato.
Diante dos apontamentos, a Controladoria-Geral vai pedir que o Tribunal de Contas local (TCDF) abra Tomada de Contas Especial, destinada a aferir eventuais prejuízos e cobrar o ressarcimento ao erário. Caso a Corte de Contas instaure o procedimento, o próprio órgão vai apurar o valor dos danos aos cofres públicos e determinar quanto os dois institutos responsáveis pelos contratos com a Secretaria da Criança terão que devolver.
Emenda distrital
As primeiras denúncias envolvendo a parceria da Secretaria da Criança com o Instituto Terra Utópica foram reveladas pelo Metrópoles em março de 2018, quando o MPDFT começou a analisar os contratos fechados por Deoclecio Luiz Alves de Souza, o Didi, ex-funcionário do deputado Israel Batista. Na ocasião, foi apurado que uma emenda de R$ 946 mil e outra de R$ 977,4 mil, somando pouco mais de R$ 1,9 milhão, teriam sido destinadas ao Projeto Sara e Sua Turma.
A finalidade era a distribuição de livros da Sara e Sua Turma e, ao mesmo tempo, promover a leitura das obras entre alunos do ensino básico de 50 escolas da rede pública. A execução do projeto ocorreria em 23 dias de trabalho, com 26 contadores de história atuando e 31.248 livros a serem entregues. O financiamento dos serviços a serem contratados para o alcance da finalidade do projeto era de R$ 949.960.
Porém, o Instituto Terra Utópica não atuou com 26 contadores, com salários já superfaturados, segundo o relatório da CGDF. O valor inicial a ser pago aos profissionais era de R$ 12,5 mil, mas o projeto foi executado por duas pessoas em 11 dias e acabou somado em um custo unitário de R$ 24 mil aos cofres públicos: ou seja, R$ 48 mil.
“A Secriança, ao analisar e aprovar a proposta do projeto Sara e sua Turma, não fez nenhuma objeção ou crítica ao valor a ser pago aos contadores de história. Também não se preocupou em sugerir uma outra forma de realizar o projeto, como, por exemplo, a utilização de voluntários da própria comunidade escolar (pais, ex-alunos ou outro agente da comunidade escolar) como forma de integração dos atores envolvidos na educação das crianças”, diz trecho do relatório da Controladoria-Geral.
Devido à queda do número de contadores de história, foi pedido o ressarcimento ao erário de R$ 277 mil. Veja, abaixo, trecho do documento da CGDF.
Além dos altos salários para os contadores de histórias, as bonecas de pano de R$ 4,9 mil também estão nas justificativas do instituto com a finalidade de compor o orçamento previsto para execução do projeto. Porém, a CGDF considera que houve “superavaliação” dos itens, uma vez que os valores estariam 770% acima dos aferidos no mercado.
A Controladoria-Geral ressalta que não houve, até o momento, a comprovação do uso de nenhum desses brinquedos na iniciativa.
Outro lado
A assessoria de comunicação do deputado federal Israel Batista afirmou que, ao longo de dois mandatos na Câmara Legislativa, “a aplicação das emendas sempre ocorreu de forma impecável, dentro da legalidade e com um rigoroso protocolo de gerenciamento”.
Por meio de nota, ressaltou que o responsável pela coordenação das emendas parlamentares à época, Deoclecio Luiz Alves de Souza, o Didi, “foi exonerado de forma preventiva, em razão da gestão desalinhada com os protocolos do mandato”.
O deputado garantiu ter sido informado dos apontamentos da CGDF mediante contato da Secretaria da Criança. “Comprovadas quaisquer irregularidades, o parlamentar exige que as providências cabíveis sejam tomadas, inclusive com apuração de responsabilidades”, destacou a assessoria de comunicação.
Procurada pela reportagem, a pasta da Criança disse que a resposta seria dada pela Controladoria-Geral. A CGDF, por sua vez, salientou que algumas providências já foram tomadas pela Secriança ainda em 2018, que notificou o ITU para “devolução de valores em face às falhas apontadas no Relatório de Inspeção da CGDF”.
“O ITU promoveu, naquela oportunidade, a devolução de recursos da ordem de R$ 352.059,53, ocasião em que efetuou o depósito no valor correspondente a R$ 277.000,00, e parcelamento do valor remanescente de R$ 75.059,53”, pontuou a Controladoria.
A Secriança também já havia informado à CGDF ter determinado a instauração de processos administrativos para apuração de eventuais irregularidades nos contratos com as duas entidades.
A reportagem não conseguiu localizar representantes do Instituto Terra Utópica e do Instituto Brasília para o Bem-Estar do Servidor Público para comentar as denúncias.
Informações do Portal Metrópoles