Ação de policiais nas manifestações que correram o Brasil evidencia a falência do modelo militar na área da Segurança Pública
Por Felipe Rousselet, Glauco Faria e Igor Carvalho
Esta matéria faz parte da edição 125 da revista Fórum.
Nas bancas ou compre aqui.
Diversos fatores já foram listados como causadores das grandes manifestações que o Brasil viu no mês de junho e que ainda vê, em grau distinto, nas ruas do país. Mas se há um consenso sobre uma das questões que teria funcionado como catalisadora dos protestos, ele diz respeito à repressão policial vista em inúmeras cidades. Em um dos grandes atos realizados na cidade de São Paulo que contou, de acordo com estimativas corrigidas posteriormente, com 300 mil pessoas em 17 de junho, a ação repressiva era apontada como uma das principais razões que teria levado pessoas que nunca haviam participado de manifestações a irem às ruas.
Mas as ações da polícia proporcionaram cenas lamentáveis em vários outros locais. No Rio de Janeiro, por exemplo, elas não se limitaram apenas aos protestos de junho: a atuação violenta se estendeu a protestos realizados à época da Jornada Mundial da Juventude, quando o papa veio ao Brasil. Na prática, um tipo de ação abusiva que é comum em muitos lugares, mas que se tornou visível para boa parte da população que nunca havia acompanhado in loco ou mesmo por outros meios esse tipo de ação.
“A Polícia Militar chegou a ter um nível de aceitação muito alto entre a população do Rio de Janeiro, em função do filme Tropa de Elite e por conta das UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora], o que se perdeu agora. A ação policial tem sido brutal não só com as pessoas que estão nos protestos, mas também com todos aqueles que estão nas vizinhanças”, explica Maurício Santoro, assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional Brasil. Ainda que parte da mídia tradicional tenha retratado os abusos, a discussão sobre as raízes do problema e como solucioná-lo não avançaram. Um grande portal da internet, por exemplo, propunha em junho uma enquete na qual perguntava se o internauta era “a favor da repressão policial a manifestantes”, como se direitos básicos pudessem ser flexibilizados. Mais recentemente, um comentarista político criticava a ação da polícia, pedindo para que pessoas que fossem a protestos com máscaras fossem detidas de pronto.
Mas foram raros os veículos que pautaram uma discussão que parece cada vez mais inadiável: a desmilitarização das polícias no Brasil. Muitos especialistas e mesmo membros da corporação em diversos estados atribuem a um tipo de cultura autoritária, consolidada em períodos não democráticos da história brasileira, o modus operandi que parece natural a muitos agentes e que envolve o uso da violência e o entendimento de que “o outro”, seja ele um manifestante ou um morador da favela, é um “inimigo”.
Ação policial nos protestos de junho chamou a atenção da população para o debate sobre a desmilitarização (Foto Mídia Ninja)
A origem da militarização das polícias
Dalmo Dallari, professor aposentado de Direito da Universidade de São Paulo (USP), também é autor do livro O pequeno exército paulista (Editora Perspectiva, 1977), no qual fala a respeito da história da Polícia Militar de São Paulo. “O decreto número 1 do governo provisório, à época da proclamação da República, dizia que as províncias passariam a se chamar estados, que eram, na verdade, subdivisões administrativas. Entretanto, em muitas dessas províncias havia grupos poderosos, grandes famílias e oligarquias muito ricas que queriam agir com absoluta independência, liberdade, sem interferência do governo central. Temendo que fosse cerceada essa liberdade, foi criado um organismo de policiamento militar que tinha esta dubiedade: ao mesmo tempo era militar e policial, quando, de fato, tratam-se de tarefas essencialmente diferentes”, analisa.
Nesse cenário, em 1906 vem a São Paulo a chamada Missão Francesa, que tinha como objetivo preparar a polícia paulista como se fosse uma tropa militar. A preocupação dos oligarcas locais tinha reflexos evidentes nos ditames da classe política. “Havia uma disputa pela afirmação da independência dos estados, e existe uma correspondência de Campos Salles, que foi governador de São Paulo, para Bernardino de Campos, seu sucessor, recomendando que houvesse uma organização armada, bem forte, que seria um casco defensivo contra qualquer ofensa”, conta Dallari.
No artigo “Militarização da segurança pública no Brasil: respostas recentes a um problema antigo”, publicado na Revista do Departamento de Ciência Política da Universidade Nacional de Medellín, o professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Luís Antônio Francisco de Souza traça um histórico sobre como a polícia foi militarizada no país e também dá detalhes de como a vinda da Missão Francesa estimulou na Força Pública local o treinamento militar, a hierarquia, a disciplina, os exercícios, o espírito de corpo e a organização interna. “Nesse momento, e até o final do primeiro período republicano, começou a se formar um verdadeiro exército paulista, com funções policiais em todo o estado, funcionando como auxiliar das autoridades policiais civis, bem como pronto para intervir nas situações de comoção pública, revoltas políticas, movimento grevistas etc.”, relata.
De acordo com Souza, na capital do estado, a Força Pública atuava no policiamento, mas também na gestão urbana de conflitos, além de greves e mobilizações operárias. Em sua estrutura interna, havia divisões como infantaria, cavalaria, bombeiros, companhias motorizadas e companhia de aviação, tipificando-se uma estrutura de formação e de ensino militarizados. Em 1907, além dos quartéis da Força Pública, foram criadas companhias uniformizadas especializadas em policiamento urbano como a Guarda Cívica da Capital e, em 1910, a Guarda Cívica do Interior. Em 1924, as guardas cívicas foram transformadas em Guardas Civis, corporação que permaneceu inalterada em sua estrutura até 1969, quando a ditadura militar extinguiu a guarda e fundiu sua estrutura, incorporando seus homens à Força Pública. É com base nessa fusão que surge a Polícia Militar.
“A Polícia Militar passa a ter competência exclusiva pelo policiamento ostensivo, sendo vedada a criação de qualquer outra polícia fardada pelos estados. A partir deste momento, de forma explícita, a Polícia Militar será considerada efetivo de reserva do Exército e terá subordinação direta a um general da ativa, posto que o posto máximo da hierarquia da PM será de coronel, posição que dá aos policiais o direito de assumir comandos, inclusive o comando-geral da força
”, explica Souza. “Com a criação da Polícia Militar, as diferenças entre o policiamento fardado e civil se acirram e o isolamento dos policiais se acentua, já que a doutrina de segurança nacional, um dos pilares institucionais do militarismo brasileiro, preconizará o distanciamento entre cidadania e segurança pública, com restrições importantes entre o contato da ‘família policial militar’ e sociedade mais ampla”, destaca. É nesse período também que são criadas organizações que servirão de linha auxiliar na repressão política do período (mas que atuam até hoje) como a Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar (Rota) e o Batalhão de Choque.
“Sempre existiu a convivência das Policias Militares e Civil. O que aconteceu foi que, na ditadura militar brasileira, essa Polícia Militar acabou sendo expandida e a Polícia Civil acabou sendo esvaziada”, sustenta o professor de Direito Penal da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Túlio Vianna. “A Polícia Civil, que antes também fazia o policiamento ostensivo, perdeu essa característica. Quer dizer, a ditadura tirou essa função e a colocou somente para investigar. E a Polícia Militar, que até então era mais aquartelada, não era polícia de rua, saiu do quartel e foi fazer o policiamento ostensivo tal como temos hoje.”
Com a instituição da Assembleia Nacional Constituinte em 1988, surgiu a possibilidade de se alterar uma estrutura policial moldada durante o regime militar, dentre tantas outras mudanças debatidas para se fazer a transição democrática no País. Júlia Leite Valente, em artigo publicado na Revista do Laboratório de Estudos da Violência da Unesp, remonta o clima em que se deram os debates naquele período. “No contexto da Assembleia Nacional Constituinte, intensificou-se a discussão sobre as Polícias Militares, tendo em vista que sua ligação com o poder no período anterior inviabilizaria sua permanência numa sociedade democrática. Paralela ao debate sobre organização policial, estava a discussão mais ampla sobre segurança pública, que opunha militantes de direitos humanos e grupos conservadores. Aqueles criticavam severamente as instituições herdadas do regime autoritário, em particular a polícia. Estes, contrários aos movimentos de luta por direitos e com forte apoio midiático, trataram de reacender o autoritarismo existente na sociedade, mobilizando sentimentos coletivos de insegurança e atraindo a seu favor opiniões favoráveis a uma intervenção autoritária na ordem pública.”
À época, como lembra Júlia, o tema da violência passou a ter grande relevância, pois a transição coincidiu com um momento de intensificação da criminalidade, que já havia aumentado nos anos 1970, mas que, no início da abertura política, acelerou ainda mais. A taxa de homicídios, de 11,68 por cem mil habitantes em 1980, passou a 22,20 por cem mil em 1990. “Predominava o pensamento de que era necessário intensificar a repressão e a opinião pública se mostrou altamente favorável ao emprego de métodos violentos pela polícia, a instauração da pena de morte ou ao recurso a métodos de justiça ilegal”, salienta.
Não que não tenha havido qualquer avanço nessa área. O reconhecimento da segurança pública como um direito social apontava para uma mudança de modelo, e foi retirado do Exército o controle direto das Polícias Militares, transferindo-o aos governos estaduais. Mas a militarização policial se manteve. “Quando o Brasil redemocratizou, as Forças Armadas ainda tinham um poder político muito grande. Não foi uma redemocratização propriamente de baixo para cima, pelo povo. Foram eles que fizeram a abertura. Estavam com a faca e o queijo na mão ainda”, aponta Túlio Vianna. “Uma das coisas que foi certamente uma imposição deles foi a estrutura policial ser mantida com o modelo no qual a Polícia Militar é dominante. Em número de policiais, existem muito mais militares que civis. Com um detalhe: a Constituição diz que a PM é força auxiliar do Exército. A nossa PM, de certa forma, tem uma subordinação, ainda que não seja direta, ao Exército. O que implica evidentemente força política para os militares das Forças Armadas.”
Em protesto, manifestantes pedem desmilitarização (Foto Mídia Ninja)
Cultura militar e desinformação da sociedade
Os efeitos de uma polícia militarizada para a sociedade são inúmeros. A inadequação de uma corporação formada para combater inimigos reflete no tratamento dado aos cidadãos em geral. “Essa cultura do treinamento militar fica clara no filme Tropa de Elite, em que você tem um treinamento extremamente violento e agressivo com os recrutas. Essa agressividade vai ser transposta, em última análise, para o suspeito”, avalia Túlio Vianna. “Existe uma hierarquia: o tenente abusa do poder dele em relação ao sargento; o sargento, com o cabo, e o cabo com o soldado. Na hora que o soldado pega um suspeito civil, que na cabeça dele é um bandido, vai transferir todo aquele abuso que recebeu do superior hierárquico. Na hierarquia militar, não é o soldado que é a base da hierarquia, é o civil e, principalmente, o que é suspeito da prática de crimes.“
Para Vianna, parte da sociedade ainda não atentou para a importância de se discutir o tema da desmilitarização por falta de informação. “Quem fala que a desmilitarização é tirar a farda ou desarmar a polícia não faz ideia do que seja isso. Só para dar um exemplo, as polícias dos EUA e da Inglaterra são 100% civis. Ninguém em sã consciência pode dizer que a polícia norte-americana é desarmada ou pouco treinada, ou, ainda, não uniformizada”, pontua. “É uma questão de unificação das atividades policiais em uma única corporação, formando o que chamamos de ciclo completo, quando ela faz tanto o policiamento ostensivo quanto o investigativo. E visa também a acabar com o Código Penal Militar aplicado aos policiais. A desmilitarização tem muito mais relação com a cultura institucional do que propriamente com o tipo de armamento e a uniformização. Isso não vai mudar, assim como nos EUA e na Inglaterra existem policiais que usam farda e armamento durante as suas atividades. Isso é bem claro em qualquer país no mundo onde a polícia seja 100% civil. O que, aliás, é a regra.”
Já Maurício Santoro utiliza o exemplo da Turquia para mostrar a dificuldade que países com um passado recente de autoritarismo têm para lidar com manifestações. “No mês passado, estive na Turquia e acompanhei alguns protestos. Lá, houve uma repressão muito forte, em torno de 7 mil pessoas ficaram feridas e, por parte da autoridades, houve um processo de criminalização, já que as manifestações não foram vistas como parte legítima do jogo político. Houve violência, prisões arbitrárias, e o primeiro-ministro estuda propor uma lei específica para as redes sociais. Com a história de autoritarismo e violação de direitos humanos nas ditaduras que eles tiveram – a última acabou quase simultaneamente à nossa –, parte dos políticos atuais tem uma trajetória de violação de direitos humanos, tanto nas ditaduras como na repressão às minorias turcas. Existe um legado autoritário”, informa. Os instrumentos repressivos utilizados pelos turcos também se assemelham bastante aos usados por aqui. “É uma polícia militar que em diversas ocasiões utiliza os mesmos equipamentos da nossa, existem caveirões, por exemplo, e o gás lacrimogêneo usado na repressão é fabricado no Brasil.”
Se a classe média, por conta das manifestações em regiões centrais, tem tido contato maior com a atuação abusiva de agentes do Estado, em locais periféricos tais ações são rotineiras. Um dos episódios mais recentes e chocantes aconteceu no Rio de Janeiro, em 24 de junho, por conta de uma incursão da polícia no Complexo da Maré, após um policial do Batalhão de Operações Especiais (Bope) ter sido baleado e morto em um tiroteio. Em uma ação com características de vingança, nove pessoas foram mortas, o que causou revolta na comunidade.
“A formação desses policiais é de enfrentamento, a ação deles é como se um batalhão estivesse indo para o front de uma guerra. O morador de favela é um inimigo, mesmo nas comunidades tidas como ‘pacificadas’, as UPPs não mudaram essa relação”, sustenta Patrícia de Oliveira, fundadora da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência e irmã de Wagner dos Santos, único sobrevivente e testemunha da Chacina da Candelária, que completou 20 anos em 2013. Para ela, desmilitarizar a polícia seria um passo importante para alterar esse cenário no qual moradores de comunidades mais pobres se tornam alvos rotineiros de abusos e violações de direitos. “Desde 1990, pedimos a desmilitarização no Rio de Janeiro, porque somos vítimas constantes da atuação de uma polícia que ainda atua como na ditadura militar. Este ano, com as grandes manifestações que aconteceram, essa reivindicação começou a ganhar mais força, com a atuação das PMs contra os manifestantes”, conta. “Antes, era só favelado que tinha de enfrentar a polícia dessa forma. Mas favelado podia apanhar, agora; com parte da elite apanhando na rua, fica mais fácil discutir a forma como atuam os policiais.”
Eliana Sousa Silva, que faz parte da ONG Redes da Maré, presenciou a morte de uma criança de 3 anos por uma bala perdida, decorrência de uma operação policial no local em outubro de 2006. O episódio foi o ponto de partida para que ela estudasse como a comunidade local via a polícia e vice-versa, o que resultou no livro Testemunhos da Maré (ver entrevista na pág. 12). Eliana, que também fez parte do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp) representando o Rio de Janeiro e as favelas, vê algumas mudanças na relação da polícia com princípios militares como, por exemplo, o fato de, até pouco tempo, não haver comando da PM que não fosse quadro do Exército. Porém, faz a ressalva de que, do ponto de vista da estrutura, isso não significou mudanças efetivas nas práticas da corporação.
“Não se modificou o estatuto que rege o seu funcionamento. O que acontece é que vai havendo mais pessoas que comandam dentro de uma lógica que, apesar de ser da PM, é mais aberta. Acho que esse debate [da desmilitarização] é importante porque tem a ver com a formação. Quando se tem uma formação em que o foco é a militarização para enfrentar a violência e todo esse contexto de crimes, é óbvio que vai deixar de se considerar outros elementos que poderiam ser parte desse enfrentamento, não apenas o enfrentamento bélico. Você deixa de trazer outras questões e, com isso, acaba caracterizando a polícia apenas de um jeito”, acredita. “Na missão da PM está prevista a prevenção do crime, só que a gente não vê a polícia agindo na prevenção, mas enfrentando situações muitas vezes de forma violenta, como a gente teve na Maré, situações que mereceriam abordagem e conduta completamente diferentes do profissional de segurança. Essa resposta também tem a ver com a lógica militar que rege essa polícia.”
“Na hierarquia militar, não é o soldado que é a base da hierarquia, é o civil e, principalmente, o que é suspeito da prática de crimes“, diz Túlio Vianna (Foto Mídia Ninja)
Uma bandeira ampla
“Para nós, a desmilitarização é uma reivindicação que tinha que ter vindo junto com o fim dos registros de ‘resistência seguida de morte’, já está atrasada. Nossa polícia não nos oferece segurança, mas sim insegurança, eles matam nossos filhos descaradamente. Essa instituição carrega os legados e ideologias da época da escravidão, são os mesmos coronéis que caçavam escravos”, acusa Debóra Maria da Silva, fundadora e uma das coordenadoras do movimento Mães de Maio, surgido em consequência do massacre ocorrido em São Paulo entre os dias 12 e 20 de maio de 2006, que vitimou 493 pessoas e cuja maior responsabilidade recai sobre grupos de extermínio que contariam com a participação de agentes do Estado. “A PM viola os direitos humanos dos praças, que são explorados dentro da corporação, então imagina o que eles não fazem nas ruas. Fazem mal aos pobres, negros e jovens das periferias, é uma polícia treinada para matar, e o inimigo, declarado nas aulas práticas deles, nos bancos onde os policiais são treinados, são os negros e periféricos. Eles matam com a certeza da impunidade”, desabafa.
Quando Débora se refere aos praças, toca em um ponto que nem sempre é abordado quando se discute a desmilitarização. Boa parte dos integrantes das PMs no Brasil se posiciona a favor de mudanças no modelo das polícias, como mostra a pesquisa “O que pensam os profissionais da segurança pública, no Brasil”, realizada pelo Ministério da Justiça e coordenada por Luiz Eduardo Soares, Marcos Rolim e Silvia Ramos. Envolvendo a aplicação de 65 mil questionários, o levantamento mostra opiniões distintas de acordo com a posição que o profissional ocupa na corporação. Dos policiais militares que não são oficiais, como soldados, cabos, sargentos e subtenentes, 42,1% preferem que a polícia seja unificada, e que seja civil, enquanto 18,8% dos não oficiais também são favoráveis à unificação, mas com a nova polícia unificada sendo militar. Entre os oficiais, são apenas 15,8% os que se identificam com a proposta de unificação das polícias, com a nova corporação se tornando civil.
“No meio policial, nós temos os praças, que são favoráveis à desmilitarização, e os oficiais, que normalmente são contrários. Só que, pelo militarismo, os praças acabam ficando interditados na sua manifestação de expressão”, observa Túlio Vianna. “O militarismo impõe uma série de restrições, e eles não têm como expressar em público, de uma forma mais ativa e contundente, o desejo deles. Então, quem quer a desmilitarização, que são os praças, não pode se manifestar e o grande público não sabe exatamente o que é isso e por que isso é importante.”
O depoimento de Heronides Mangabeira, cabo da Polícia Militar do Rio Grande do Norte , evidencia os pontos abordados por Vianna. “A pessoa entra na polícia e deixa de lado vários direitos e garantias que tinha porque ela passa a ser, a partir de então, militar”, diz Mangabeira, que também é acadêmico de Direito e pesquisador da área de Segurança Pública. “Por conta disso, somos cerceados de vários direitos como liberdade de pensamento, de expressão e até mesmo de locomoção. Por exemplo, se eu for me dirigir até São Paulo, tenho de pedir ao meu comandante que me libere e, mesmo assim, eu tenho de pegar um documento de deslocamento, para quando chegar em São Paulo procurar uma unidade da Polícia Militar, assinar e comprovar que realmente estive aí”, argumenta.
Mangabeira também afirma que o policial não conta, na sua condição de militar, com outros direitos trabalhistas que afetariam o desempenho profissional e a p
rópria atuação dos agentes. “O militar também sofre por não ter jornada de trabalho digna, por não ter horas extras, adicional de insalubridade, adicional noturno… Coisas que todos os trabalhadores têm e o próprio policial civil ou o rodoviário federal, que trabalham de forma similar ao PM, um serviço preventivo e ostensivo, têm”, compara. “Isso reflete na rua, na sociedade, no serviço de prestação de segurança pública, já que o policial sofre de depressão, estresse…”
Ele também acha inadequada a formação dada aos PMs hoje, algo que dificulta a interação dos agentes com a sociedade. “A formação militar é bastante rígida e o policial vai para a rua com aquela cultura, tratando a sociedade às vezes de forma igualmente dura”, aponta. Túlio Vianna também acredita que o modelo policial hoje prejudica muito os não oficiais, que acabam ficando à mercê de um estrutura pouco flexível e autoritária. “O modelo de militarização trabalha para tornar o policial, ou o militar, um objeto na mão do seu comandante. De forma tal que, se você tiver uma guerra, vai precisar daquele indivíduo trabalhando 24 horas por dia para o Exército. Para repelir a ameaça do inimigo, tem de ter uma obediência muito grande, são situações extremas onde a morte é muito eminente. Então, o militarismo foca em uma dessubjetivação do militar. É a obediência máxima”, argumenta. “A polícia não pode ser assim, é um trabalho como outro qualquer. O sujeito volta para a casa depois do expediente, tem sua vida normal dentro do país dele. Nós não podemos transportar o ponto de vista militar e sua hierarquia para dentro da polícia.”
Outra questão que deve ser tocada em relação à desmilitarização é o papel desempenhado pela Justiça Militar, à qual cabe processar e julgar policiais militares em crimes militares tipificados em lei. Embora em crimes não militares, como os dolosos contra a vida, por exemplo, o agente possa ser julgado na Justiça comum, o papel desempenhado por esse ramo militar tem, de acordo com Vianna, ignorado fatos relevantes e focado mais em questões relativas à manutenção da hierarquia, penalizando quem está na base.
“Claro que se você perguntar a um PM se ele acha que a Justiça Militar é rigorosa, vai falar que sim e argumentar que os números de condenação são muito grandes. Porém o número de oficiais condenados é muito pequeno. Mas é rigorosa com os praças, e não necessariamente por crimes de corrupção por exemplo, às vezes por questões bobas como o sujeito não estar uniformizado ou ter xingado o oficial”, aponta Vianna, que também atenta para uma espécie de mistificação em torno de hierarquias e regramentos inflexíveis, como se a rigidez fosse um fator impeditivo de desvios de conduta ou corrupção. “Hierarquia não acaba e nem diminui corrupção. Na verdade, muitas vezes ela concentra a corrupção em oficiais. Esse argumento é muito ingênuo, se a hierarquia militar resolvesse o problema da corrupção, nossa polícia seria a polícia da Suíça.”
Propostas em andamento
Mesmo depois da promulgação da Constituição de 1988, a ideia da desmilitarização permaneceu como pauta e voltou à tona em alguns momentos. Em 1997, o secretário da Segurança Pública de São Paulo José Afonso da Silva defendia um projeto de emenda constitucional (PEC), de sua autoria, que unificava as polícias. À época, declarou ao jornalFolha de S. Paulo que a Constituição havia institucionalizado uma duplicidade policial “que não funciona, em razão do desentrosamento entre os dois organismos policiais”. O projeto de Silva, que era também defendido pelo então governador Mário Covas, mantinha a PM, mas com atribuições e efetivo menores.
Hoje, tramitam no Congresso Nacional duas propostas de emenda constitucional que tratam da desmilitarização da polícia e, pelos seus autores, é possível perceber que essa é uma questão que vai além da esfera de movimentos sociais e partidos de esquerda. A PEC 430, de autoria do então deputado federal Celso Russomanno, de 2009, está em tramitação na Câmara dos Deputados e tem como objetivo unificar as Polícias Civil e Militar em todos os estados e no Distrito Federal e desmilitarizar o Corpo de Bombeiros. Já a PEC 102, de 2011, do senador Blairo Maggi (PR/MT), pretende autorizar os estados a poderem desmilitarizar a PM, unificando suas polícias.
“O modelo como está, com duas polícias, cada uma fazendo metade do serviço e com a rivalidade e a competição entre militares e civis, é muito ruim. Esse novo modelo que proponho vai conservar a hierarquia e a disciplina, mas não precisa ser militarizada, esse papo está ultrapassado. Precisamos de uma polícia cidadã e próxima, que previna, isso sim é importante, a sociedade está desassistida, esse modelo que aí está não é o melhor”, diz Blairo Maggi. “Essa discussão não pode mais ser adiada, ela precisa ser colocada na pauta urgente. Os índices de morte em conflito com polícia são alarmantes, precisamos pensar um novo modelo, para avançar nas políticas de segurança pública no País.” De acordo com Maggi, a proposta deve entrar em votação no Senado ainda no segundo semestre de 2013.
O jurista Dalmo Dallari acredita que, para se efetivar a desmilitarização, não haveria como pressuposto básico a unificação das duas polícias. “Não vejo necessidade da unificação. São organizações que poderão ter atribuições diferentes, cada uma com a sua organização, sua própria hierarquia, mas ambas definidas, reconhecidas e tratadas como organizações civis, não militares.” F
A farsa dos autos de resistência seguida de morte
Em São Paulo, policiais em serviço foram responsáveis pela morte de 5.591 pessoas entre 2001 e 2011, uma média de 508 por ano. Os números são do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), no 5º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil.
Em 29 de julho, uma das mais importantes organizações de direitos humanos no mundo, a Human Rights Watch (HRW), encaminhou ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), um relatório denunciando as “execuções extrajudiciais” cometidas por policiais militares no estado. No documento, a entidade explicita sua preocupação “em relação aos obstáculos existentes para a responsabilização de policiais que cometem execuções extrajudiciais no estado de São Paulo” e diz existir um “acobertamento policial” dessas mortes. A entidade analisou 22 casos de “autos de resistência seguida de morte” como referência para análise. Destes, em 20 “as provas estudadas sugerem que policiais removeram as vítimas da cena do crime e as levaram alegadamente para socorrê-las. Nenhuma dessas vítimas sobreviveu.” Conforme dados do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa de São Paulo (DHPP), das 379 pessoas removidas, 360 morreram.
Mais duas formas de acobertar os assassinatos, segundo a HRW, são práticas já denunciadas por movimentos sociais. Introduzir armas nas cenas dos crimes, tentando fazer crer que a vítima estava armada e o confronto foi inevitável; e despir os corpos, a fim de evitar provas periciais. Notou-se que, “em 11 casos, as roupas das vítimas haviam sido removidas e descartadas antes de seus corpos serem levados ao Instituto Médico Legal (IML) para análise.”
Fonte: http://revistaforum.com.br/blog/2013/09/desmilitarizacao-um-debate-inadiavel/