MÍDIA & CRIME
Por George Felipe de Lima Dantas em 03/11/2009 na edição 562
Em tempos de tantos tiroteios no Rio de Janeiro, Alberto Dines parece andar “próximo do alvo” no artigo “O pedaço mais visível do lodaçal“. Faz isso ao abordar questões correntes de segurança pública neste Observatório da Imprensa. O diferencial dele na precisão “do tiro” não foi deixar de apontar a polícia como parte do problema em geral, mas sim, não colocá-la no lugar “mais fundo do lodaçal”. A abordagem feita por Alberto Dines é realmente diferenciada…
A diferenciação se prende ao fato de que o jornalista foge ao padrão midiático de raciocínio fácil e intuitivo, de que cada novo episódio de crime e violência seja “mais um caso de polícia ou com a polícia”.
O observador apenas um pouco mais atento ao cenário nacional de insegurança pública irá constatar uma demonização sistemática da polícia enquanto responsável “de plantão” por uma situação que pode não ser exatamente conforme retratada em suposta unanimidade midiática.
Afinal, o “problema do crime” pode ser diferente do que vem a ser o “crime problema” do país. O primeiro é genérico e universal e tem como alvo específico o patrimônio (muitos milhares de pequenos furtos e roubos), sendo objeto de um número maciço de ações policiais no mundo inteiro (seu alto número de registros, todavia, ainda esconde uma “cifra negra” ou oculta). Já o segundo é específico e não tem os mesmos protagonistas clássicos do primeiro, com eles logrando escapar, via de regra, da esfera de atuação da polícia e da repressão criminal institucional realizada pelo judiciário. O “crime problema” é perpetrado por “intocáveis ou inatingíveis”.
Bem próximo do alvo
O “crime problema” pode ser imaginado como uma espécie de tipologia geral e que abrange ocorrências aparentemente inusitadas (apenas aparentemente…) e de grande ressonância, mas que nem por isso são as mais prevalentes (as mais prevalentes, repetindo, são os delitos mais comuns – furtos e roubos…). Não é todo dia que uma grande autoridade do país é denunciada amplamente na mídia. Também não é todo dia que uma aeronave policial é abatida.
As ocorrências do “crime problema”, no entanto, são emblemáticas da “qualidade específica” dos criminosos/agentes mais afoitos, bem como do próprio limite que a cidadania pode esperar e “modelar” do comportamento desviante focado pelo varejo e atacado da mídia de forma espetacular. Mas elas demonstram o que é realmente problemático no “caráter nacional” em relação ao “nosso crime”, e não ao “problema global do crime” – este último, um fenômeno comum e da humanidade inteira.
Os ladrões e punguistas das ruas de Nova York e de Paris não são muito diferentes dos de São Paulo e Rio de Janeiro. A ONU, em uma de suas publicações periódicas, projeta que a maioria da população de qualquer uma das grandes cidades globais será vítima de um dos chamados “pequenos crimes” em dado momento dos próximos cinco anos. Ou seja, o que diferencia a criminalidade das sociedades globais contemporâneas não é o “problema do crime”, mas sim, o “crime problema”. E o que existe de mais diferenciado no que escreveu Dines é exatamente o fato de tangenciar, bem “próximo do alvo”, o “lugar mais fundo do lodaçal” – o “crime problema”.
Limites e consciência ética
Parece que o grande diferencial da insegurança pública nacional não seja o tipo e volume do “problema do crime”, mas sim, a qualidade dos “crimes problema” que afligem a sociedade brasileira especificamente. Estes últimos são os crimes que, de alguma forma, dão a feição estruturante do que depois vem a ser o “problema do crime”. A corrupção parece estar sempre manifesta no “crime problema”, gestando o caráter decadente do “problema do crime”. Corrupção que é traduzível, essencialmente, pela apropriação desviante do patrimônio público em algo privado, o que, por sua vez, passa a ser emblemático e exemplar do “caráter nacional”.
Considerando que o caráter nacional (cuja marca peculiar também está expressa no “crime problema”) seja um limitador cultural até mesmo do comportamento delitivo dos criminosos mais comuns (pertinentes ao que de ordinário possa existir no “problema do crime”), é preocupante imaginar que esse caráter já seja tal, a ponto de favorecer o rompimento de limites básicos da lei e da ordem. Isso acontece tanto por parte de membros de uma elite apenas supostamente respeitável, quanto do mais ordinário dos “espertos” do narcotráfico. Assim, o rompimento de limites fica mostrado “de cima para abaixo”, tanto nos crimes dos “intocáveis do poder”, quanto dos que ousam até mesmo matar os “prepostos oficiais” desse poder – caso do abate do helicóptero policial no Rio de Janeiro.
Os limites foram rompidos. Como restabelecer a “ordem” no “lodaçal” do crime e da violência? De cima para baixo ou de baixo para cima?
E é exatamente nesse rompimento de limites e falta de consciência ética, igualmente entre membros da elite e da criminalidade “mais comum”, que talvez esteja o “mais fundo do lodaçal” a que Dines se refere.
O resto, sim, é só “caso de polícia”.
Fonte: http://obs.dualtec.com.br/news/view/o-pedaco-invisivel-e-mais-fundo-do-lodacal