Nas Forças Armadas e nas forças militares em geral, o bordão “missão dada é missão cumprida” traz bem mais do que o respeito à hierarquia. Remete também à responsabilidade, à eficácia e ao senso de entrega que emana de uma formação baseada na ordem e na disciplina. Há orgulho no cumprimento da missão, mesmo que a elevados custos pessoais, inclusive o maior deles: a vida. Não há como negar, trata-se de uma profissão diferente que deve, portanto, ser tratada de forma distinta. Mas diferente não pode ser sinônimo de intocável, muito menos de garantia de privilégios injustificáveis.
O déficit dos militares é o que mais cresce dentro do nosso grande déficit previdenciário que hoje pressiona as contas públicas e consome recursos que deveriam ajudar a aliviar as nossas mazelas sociais. Foram R$ 36 bilhões em 2017 e, estima-se, mais de R$ 40 bilhões em 2018. A despesa previdenciária anual total com os militares ultrapassa os R$ 42 bilhões. Isso equivale a mais de 50% do orçamento da Defesa Nacional, limitando os necessários e urgentes investimentos em tecnologia da informação, inteligência artificial, dados, e também restringindo o realinhamento da remuneração dos militares ativos.
Como todo o nosso problema previdenciário, aqui também a questão vai além das contas públicas e resvala nos princípios de justiça social. Para um país em que a maior parte da população ganha um salário mínimo ao se aposentar – e depende de um Estado que gasta com a Previdência mais do que gasta com educação, saúde e segurança juntos, não há porque não rever regras que geram benefícios que superam em 10 vezes esse valor, sem o devido equilíbrio nas contribuições.
Muito além do déficit crescente, há ali critérios que fazem multiplicar o problema. Atualmente, mais da metade dos militares se aposenta antes dos 50 anos de idade. Além disso, fazem jus e acumulam pensões com base em regras indefensáveis nos dias de hoje. Não fossem esses argumentos suficientes, há ainda um outro: as regras dos militares vinculam o regime especial de Previdência das policiais e bombeiros militares nos Estados, outra grande fonte de desequilíbrio fiscal dos entes subnacionais.
O problema do déficit da Previdência nos Estados não é diferente do da União – senão mais grave. Ao analisarmos as regras locais, em particular a dos militares, percebe-se que também aqui o desequilíbrio é grande e os privilégios estão extrapolados. A aposentadoria, além de precoce, gera distorções tão graves como a do Rio de Janeiro onde, para cada coronel ativo da Polícia Militar e dos bombeiros, tem-se 5 aposentados de igual patente. Em números de 2016, eram 230 coronéis na ativa e 1.045 aposentados que recebiam o equivalente a 11% do gasto previdenciário de todo o Estado com militares inativos.
Além disso, a prática recorrente de se conceder aposentadorias equivalentes não à patente corrente, mas sim à patente diretamente superior à do militar que se aposenta, gera um ônus adicional. Descola-se ainda mais o benefício recebido das contribuições feitas ao longo da vida. Não é coincidência, portanto, que é a categoria militar a que responde por cerca de 30% do déficit previdenciário nos Estados, conforme mostra o trabalho que Paulo Tafner e Arminio Fraga publicaram recentemente.
Mas estamos às vésperas de conhecer a proposta de reforma do novo governo. Governo que, por meio do voto, o mais poderoso instrumento de legitimidade, recebe a missão de melhorar o Brasil. Missão essa que exige que ele seja capaz de reduzir as enormes injustiças sociais que assolam nosso País e que hoje alijam de oportunidades a grande maioria da população.
Manter o atual regime previdenciário significa, muito além do que quebrar o Brasil, reforçar a condição de pobreza de milhares de brasileiros que dependem do Estado. E isso vale, em particular, para o regime previdenciário dos militares e das forças militares estaduais. O governo recém-eleito, com tantos militares tão bem preparados nos mais altos escalões, é o que poderá, muito mais do que qualquer outro, se valer do seu bordão para cumprir a missão que lhe foi dada pelo povo brasileiro.
Ana Carla Abrão, O Estado de S.Paulo – ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN