A reflexão de hoje é inspirada em um dos “eixos indicadores” do Pacto Pela Vida no DF: 4. Produtividade Policial. É um daqueles textos chatos e “teóricos” que só merecem ser lidos por quem entende ou simplesmente por quem gosta de compreender o tema segurança pública e os problemas que envolvem a polícia no Brasil e no mundo. Se você é um prático, que acha que entende tudo de polícia e que “policiólogos” e “teóricos” são uns “merdas”, este texto não merece ser lido por você. Este texto é seletivo, é somente para quem realmente gosta de ler, pois ele é grande e tem um tempo estimado de leitura de 6 (seis) minutos.
BITTNER (2003) ao escrever sobre os Aspectos do trabalho policial, em especial as funções da polícia na sociedade moderna, nos afirma que:
“O abandono, na definição do papel da polícia na sociedade moderna, da abordagem derivada das normas, imediatamente chama a atenção para um nível da realidade social que não está relacionada a formulação de ideias. Embora (em termos destas formulações) a atividade policial derive seu significado dos objetivos de cumprimento da lei, achamos que, na realidade, há certas características significativas associadas ao trabalho policial que são bastante independentes dos objetivos. Isto é, o trabalho policial geralmente é visto como tendo traços de caráter que são dados como certos, e que, em ambos os lados controlam interações entre policiais e cidadãos.”
Para ele, algumas características da polícia, observadas mundialmente, constitui um “limite realista do que se espera da polícia e de como os policiais de fato se comportam”. Ao discorrer sobre as concepções populares sobre o caráter do trabalho policial um ponto chama-nos a atenção entre “os traços de caráter comumente percebidos como associados ao trabalho policial – e que, desse modo, constituem em parte a realidade social na qual o trabalho tem que ser realizado” – são de importância primordial os três a seguir: o trabalho policial é uma ocupação corrompida, o trabalho policial não é apenas uma ocupação corrupta e a distribuição ecológica do trabalho policial, concentrada no nível de emprego determinado pelos departamentos e nos termos das orientações dos policiais individuais, reflete toda uma gama de preconceitos públicos. Isto é, a polícia é mais fácil de ser encontrada em lugares onde se encontram ou vivem certas pessoas do que em outras partes da cidade, por isso nosso interesse no Eixo 4 – Produtividade policial, do Pacto Pela Vida.
1 – O trabalho policial é uma ocupação corrompida – As origens do estigma foram criadas no passado distante, e embora muito tenha sido dito e feito para apagá-lo, tais esforços têm sido notavelmente mal sucedidos.
“O vigia medieval, recrutado entre as camadas dos destituídos e sujeito a descrições satíricas, era considerado pertencentes ao mundo das sombras, que se supunha que eles controlavam. Durante o período da monarquia absoluta a polícia passou a representar os aspectos subterrâneos da tirania e da repressão, e os policiais eram desprezados e temidos mesmo por aqueles que ostensivamente se beneficiavam de seus serviços. […]. Outras razões levam em conta principalmente as circunstância de que o trabalho policial é uma ocupação com baixa remuneração, cujas exigências podem ser cumpridas por homens que receberam pouca instrução formal. E alguns, finalmente, a partir de abusos dos relatos sobre abusos policiais, generalizam tais abusos para a ocupação como um todo.” (BITTNER, 2003)
Poucas coisas mudaram de lá para cá nestes aspectos. Ao ver os dados da Secretaria de Segurança Pública no DF é perceptível que a polícia, tanto civil, quanto militar, trabalham muito. Mas trabalhar muito não significa ser “eficiente”, “eficaz” e “efetiva”. Os números também demostram isso. Trabalhadores braçais, ganham pouco e trabalham muito, se sobrecarregam às vezes excessivamente, por não terem as ferramentas necessárias para executarem um bom trabalho ou simplesmente por não saber operar as “ferramentas” que estão disponíveis para eles. A falta de efetividade nas ações potencializam a visão generalista que a população tem da polícia.
Os Eixos Indicadores do Pacto Pela Vida no DF, me recuso chamar tal programa de “Viva Brasília”, se referem aos crimes prioritários para serem reduzidos, e que não estão conseguindo reduzir, diga-se de passagem, são quatro:
- C.V.L. I – Crimes Violentos Letais Intencionais, que abarca o homicídio, o latrocínio e a lesão corporal seguida de morte;
- C.C.P – Crimes contra o Patrimônio, que abarca o roubo a transeunte, roubo de veículo, roubo em transporte coletivo, roubo em comércio, roubo em residência e furto em veículo.
- OUTROS CRIMES – Onde focam em três, basicamente: tentativa de homicídio (que ao meu ver deveria constar no rol do C.V.L.I), tentativa de latrocínio (que também ao meu ver deveria constar no rol do C.V.L.I) e Estupro.
- PRODUTIVIDADE POLICIAL – que abarca o Tráfico de Drogas, o Uso e Porte de Drogas, Posse/Porte de Arma de Fogo e Localização de Veículo furtado ou roubado.
É fato na literatura mundial que o trabalho policial é “imensurável”, em especial, quantificar o quanto o policial “preveniu” de crimes. Quantos crimes evitou durante um patrulhamento? Por isso, os gestores focam tanto em “quantidade de abordagens”, muitas vezes “ilegais”, pois fogem da discricionariedade do agente e deixam a desejar quanto a “fundada suspeita”, mas isso pode ser assunto para outro texto. Focam também na “quantidade de armas” e “drogas apreendidas”, “veículos recuperados” e muitas vezes em “flagrantes” e “prisões realizadas”, verifiquem que coloquei “prisões realizadas” fora da caixinha “flagrantes” justamente para mostrar que a lei prevê que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por decisão judicial”, mas que existem outros tipos de “prisões” em nosso meio.
O item “Produtividade Policial” no Balanço apresentado pela Secretaria de Segurança Pública e da Paz Social chama a atenção para alguns pontos. A polícia “desacelerou” no último ano, principalmente no último mês e os números referentes ao aumento de crimes torna isso perceptível. As prisões por tráfico de drogas caíram no ano 15,6%, já no mês de setembro caiu 24,4%, as prisões por uso e porte de drogas caíram 14, 2% e no mês de setembro caiu 28,1% e as prisões de posse/porte de arma de fogo caíram 11,2% no ano e 18,9% no mês de setembro comparados com o ano anterior.
O que isso pode significar? Podemos analisar que os percentuais que estão caindo são apenas referentes ao trabalho da Polícia Civil, já que o combate ao tráfico de drogas é de sua competência, e a corporação está em greve há algum tempo, ou que existe também um movimento velado (tartaruga) na PMDF que tem desacelerado o serviço. Este fato só poderá ser confirmado nos próximos três meses, pelo menos. Foi assim das outras vezes. (grifo dado)
Um ponto que pode corroborar com a hipótese levantada acima, que tais percentuais referem-se ao trabalho não executado pela polícia civil, é o fato da localização de veículos furtado ou roubado, trabalho tipicamente da PM, ter aumentado no ano de 2016 em 9,5% e no mês de setembro do mesmo ano 54,5%. O que pode significar que as operações da PMDF estão surtindo efeito e também que a PMDF está trabalhando bem mais do que trabalhou o ano passado.
Outro ponto que pode ser levado em consideração é que o aumento no percentual de localização de veículos, furtados ou roubados, pode estar diretamente ligado aos 47,7% de aumento no percentual de roubo de veículos, no mesmo período, aliado a um possível aumento no percentual de veículos furtados, que não aparece, mas que deveria aparecer no demonstrativo, pois os dados ficam incompletos para uma análise. Os furtos de veículos são fundamentais para termos uma melhor noção, pelo menos mais próxima da realidade da tal “produtividade policial”.
O bom de trabalhar com números é que eles nos levam para vários caminhos, mas em um ponto os números não metem. Para BITTNER (2003) a atividade policial é muito mais direcionada a quem a pessoa é do que ao que ela faz. O trabalho policial está direcionado pelas próprias forças policiais somente para a apreensão de drogas e armas, além da localização de veículos (grifo dado). O foco policial é o drogado e o traficante que eventualmente rouba ou furta veículos, focam na pessoa e não no que ela faz. Eis a dificuldade em ver além disso! Os policiais são treinados e direcionados, por meio de “políticas públicas” institucionais a perpetuar tais ações.
Por isso, fica difícil reduzir qualquer outro tipo de crime que não esteja voltado para o “aumento da produtividade”. Se um “drogado” eventualmente roubar um transeunte, roubar um veículo, roubar um coletivo, roubar um comércio, furtar uma residência ou cometer um homicídio com certeza ele será localizado, se ele estiver fora destas “características” possivelmente a polícia terá maior dificuldade em identificar o modus operandi do “novo” criminoso (grifo dado. Não é atoa que em entrevistas o discurso da autoridade é sempre voltado para legitimar seu próprio discurso e fortalecer a ligação do crime ao “tráfico” ou ao “uso de drogas”.
Desta forma, o circulo vicioso da segurança pública vai se consolidando. Para BITTNER (2003) os alvos preferidos da preocupação policial são as minorias étnicas e raciais, os pobres que vivem nas favelas urbanas e os jovens em geral (grifo dado). Muitos dos policiais que atuam hoje nas corporações do país são oriundos destas minorias, vieram de camadas pobres da sociedade, muitos moraram ou até moram em favelas atualmente, mas alguns passaram de “oprimidos” a “opressores”.
Para fechar, concluímos nossa reflexão mostrando que a “produtividade policial” diminuiu este ano, mas principalmente este mês e teve reflexo em todos os outros crimes que não estão ligados diretamente a “produtividade policial”. No mês de setembro houve um aumento de 22,7% no número de homicídios no DF, os Crimes Violentos Letais e Intencionais aumentaram 21,3%, o Roubo a Transeunte aumentou 138,8%, o Roubo a veículo aumentou 47,7%, o Roubo a coletivos aumentou 58,9%, os Roubos a comércio aumentaram 54,7%, os Roubos a Residência aumentaram 106,1% e os furtos em veículo aumentaram 272%, totalizando um aumento do número de crimes contra o patrimônio de 129,7%. E não se pode falar em falência ou fracasso do Pacto pela Vida no DF?
É importante ressaltar, que os números podem ser ainda piores em consequência da subnotificação de ocorrências, tendo em vista a greve da polícia civil que fechou delegacias em horários importantes de ocorrência de crimes (pela manhã e após as 19h, por exemplo). Na cidade Estrutural o posto policial da PCDF foi fechado. A única opção para a população é se deslocar a 8ª DP no SIA, no período da tarde, ou a Central de Flagrantes na 1ª DP, que fica no Plano Piloto. Em uma comunidade carente como a Cidade Estrutural, com sérias dificuldades de transporte público, é pouco provável que as pessoas desloquem-se para fazer tais registros. Talvez seja uma boa forma de se “reduzir” os índices criminais na cidade.
Aderivaldo Cardoso – Especialista em Segurança Pública e Cidadania, pós graduado pelo Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, autor do livro Policiamento Inteligente: Uma análise dos postos comunitários de segurança pública no DF (2011) e ex-assessor especial de gabinete/comunicação da Secretaria de Segurança Pública e da Paz Social (2015/2016).
Referências Bibliográficas:
BITTNER, Egon – Aspectos do Trabalho Policial/Egon Bittner; tradução Ana Luísa Amêndola Pinheiro. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. – (Série Polícia e Sociedade, n.8/Organização: Nancy Cardia).
Balanço Criminal do Viva Brasília – Nosso Pacto Pela Vida – Comparativo do Período acumulado de Janeiro a Setembro e o Mês de setembro de 2015/2016. Acessado em 12/10/2016 às 08:05 – http://www.ssp.df.gov.br/images/PASTANOVA/ApresentacoesDeColetivas/balanco.criminal_setembro.2015.2016.pdf