Retorno a esse tema e apresento a vocês o segundo capítulo da Monografia apresentada em 2007, no curso de direito, como resultado de um trabalho proposto pelo professor Sérgio Della Sávia, na disciplina Metodologia Científica.
Como já disse antes, na época, eu não tinha conhecimento necessário para realizá-la, mas foi um grande desafio. Foi com o conhecimento adquirido nesse trabalho que consegui passar para a Especialização em Segurança Pública da Universidade de Brasília e mudar alguns conceitos que foram introjetados em meu pensamento durante o curso de formação de soldados.
Muita coisa desse capítulo já foi apresentada aqui no blog, mas dessa vez disponibilizarei a cada semana algo novo dele e do restante desse trabalho.
O capítulo II, seguindo a linha de pensamento do subcapítulo anterior (auge do militarismo) aborda a violência policial, sob o prisma da formação militar. Essa formação pode de alguma maneira estar ligada a violência policial que nos deparamos na atualidade? A maioria das pessoas que são abordadas pela Polícia Militar reclama de “chutes” no tornozelo e “socos” no meio das pernas, esse problema não seria na formação, já que todos agem da mesma maneira?
2 – A violência policial pode ter sido influenciada pela formação militar?
O país tem mergulhado na insegurança e no medo. Ninguém está protegido contra a violência. O problema ocupa o centro das preocupações de todos nós e atravessa a sociedade em todos os níveis. Tanto pobres quanto ricos sofrem com o avanço da violência e da barbárie. Populações inteiras na periferia das grandes cidades vivem sitiadas e amedrontadas, sob o domínio de criminosos de todos os tipos, inseguras, frente às graves deficiências das corporações policiais.
A corrupção introduziu seus tentáculos também no interior dos aparelhos de segurança pública, nos presídios e nas instituições destinadas à recuperação de adolescentes infratores e se espalhou pelo país, a partir do péssimo exemplo emanado das altas autoridades de nossa vida política. Implantou-se um cenário de caos e descontrole, principalmente com a impunidade que deriva da ineficiência do sistema jurídico brasileiro, o crime se infiltrou nas instituições, agravando a ineficiência e gerando mais impunidade ainda.
O despreparo de agentes policiais devido a formação deficitária proporcionada pelo Estado transforma aqueles que deveriam ser protetores da população em vilões fardados , que se utilizam da força contra aqueles que não tem como se defender, gerando insatisfação da população e uma disputa de poder entre policiais e bandidos que se reflete na sociedade que deveria ser protegida.
A violência é visível todos os dias, mas existe um tipo de violência que ainda é camuflada em nosso país. A violência policial está presente todos os dias nas cidades brasileiras. No Distrito Federal basta andar a noite pela cidade que será observado essa triste realidade. A Polícia Militar do Distrito Federal é uma das melhores do país nos quesitos: salário, formação intelectual e formação profissional. E em nossas cidades constatam-se várias denúncias de violência policial. Porquê?
Mesmo tendo bons salários, em comparação a média nacional, uma boa formação profissional e intelectual, pois grande parte do efetivo possui nível superior, encontramos vários casos de violência envolvendo policiais no Distrito Federal. Acredita-se que muitos desses casos estão diretamente ligados à formação militar. Em uma breve pesquisa na Internet observa-se que em sua maioria os casos que mais repercutiram na mídia, envolviam policiais militares do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), Unidade da Polícia Militar do Distrito Federal mais militarizado dentro da instituição.
A violência policial além de uma realidade também é uma herança cultural, pois a polícia em todos os paises surge da necessidade da elite dominante controlar as classes desfavorecidas. No Brasil esse fato não é diferente, pois a policia também foi forjada em seus primórdios para controlar os pobres, o que gerou uma ideologia própria, que se volta principalmente contra as classes marginalizadas. PEDROSO ao estudar as origens do militarismo na formação das Polícias Militares no Brasil e de sua ideologia diz que isso é essencial para compreendermos o apelo fácil à violência, pois na concepção militar, os que não se submetem disciplinarmente às regras estabelecidas, perturbam a ordem social e põem em risco a segurança são classificados como ‘inimigos’, contra os quais todo uso da força é válido.
“Na história brasileira, sobretudo a partir do início do século XX, a organização da polícia em moldes militares, com quartéis, fardas, patentes militares, continência, treinamento de ordem unida e outras peculiaridades de uma corporação militar, reflete objetivos políticos. O tempero do Liberalismo levou à adoção de fórmulas jurídicas para “legalizar” o autoritarismo dos governantes, mas permaneceu subjacente a concepção sintetizada numa frase atribuída a Washington Luiz: “Para os amigos tudo, para os inimigos a lei”. Os adversários políticos eram “inimigos” e a lei eram as regras fabricadas pelo grupo dominante, para cuja imposição se considerava justificado o uso da força.” (PEDROSO, 2005:19).
Segundo relatórios da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização dos Estados Americanos (OEA) e de diversas organizações não-governametais, os tipos mais comuns de violência cometidos pelas forças policiais latino-americanas são: Uso da tortura contra suspeitos e detentos dentro dos estabelecimentos policiais; abusos contra prisioneiros dentro de delegacias e presídios; abuso de poder letal e violência contra trabalhadores rurais. O que nos chama a atenção é a “coincidência” da maioria desses países da América do Sul terem sofrido intervenções militares ou vivido sob ditaduras por longos períodos de sua história.
A prática de extrair informações de suspeitos por meio de tortura é recorrente na história política do Brasil. Tal prática é reforçada, em alguns casos, por uma legislação penal que privilegia a confissão do suspeito em detrimento de outros meios de prova e que se durante os regimes autoritários a tortura era empregada contra inimigos políticos do regime, agora ela é geralmente utilizada contra criminosos comuns, na sua maioria pertencentes aos segmentos mais pobres da população. (COSTA, 2004:18)
Na maioria das cidades brasileiras a violência policial é justificada e aceita pela sociedade, pois parte significativa da população vê na ação enérgica das polícias a solução para o problema da violência urbana. Confunde-se energia com violência. Esse fato ocorre inclusive nos cursos de formação. Um considerável número de pessoas que já foram abordadas por policiais reclama da forma grosseira como foram surpreendidos, ou da violência sofrida durante a abordagem. Em sua maioria absoluta reclamam de “chutes” nos tornozelos e de “socos” no meio das pernas. Quando se tem um número elevado de agentes policiais cometendo o mesmo “erro”, em um país de proporção tão grande, deve se perguntar se esse fato não é reflexo de uma mesma metodologia de ensino empregada nos cursos de formação.
Nesse sentido a violência policial é tolerada por muitos. Essa tolerância da sociedade civil acaba sendo refletida como apoio a violência e cria obstáculos para a reforma das polícias. Para agravar a situação, aos olhos de algumas autoridades públicas e de certos setores da sociedade, a tortura é encarada como um meio legítimo empregado na “guerra contra o crime”. Esse pensamento acaba por torna-se um círculo vicioso, pois a imagem de polícia violenta com autorização do estado para matar sobrevive no imaginário coletivo da população, o que será refletido na formação do policial recém chegado na instituição, pois o policial é um ser oriundo da sociedade em que vive e reflete o pensamento dessa sociedade.
O policial bem preparado deve estar conscientizado disto e da dignidade e importância de seu trabalho. É, pois, urgente que se logre resgatar a boa imagem da polícia. Já por ser o exercício da função policial um eterno ônus ético-profissional que pesa sobre cada policial, ela não é ocupação para qualquer um e menos ainda de superficial e rápida formação básica (estágio em que se deve aproveitar traços da instrução militar: adestramento físico, fardamento, ordem unida, conjugada com o elementar preparo jurídico-humanístico) tal como costuma ocorrer entre nós (p. ex., 60 dias para o recruta policial). O policial prepotente (quase sempre mais a favor do meliante rico que da vítima pobre, negra, gay…), espalhafatoso e que troca a inteligência pela força bruta (aqui é melhor o respeito que o temor) reforça a baixa estima social de sua nobilíssima profissão. Se a força muscular houvesse de ser relevante nesta função estatal, o melhor recrutamento policial seria feito entre os estivadores. (AMARAL, 2003:51. O grifo é meu)
A formação policial sempre esteve focada no uso da força, pois sempre priorizaram os atributos físicos aos intelectuais. Os homens escolhidos para exercerem a função policial se assemelhavam àqueles escolhidos para as Forças Armadas, em sua maioria, eram pouco instruídos, fortes e de alta estatura. A pouca instrução é importante para evitar questionamentos no momento da execução da ordem. Afinal, desde o surgimento do militarismo os soldados são elementos de execução, devendo, portanto não questionar nenhuma ordem que porventura lhes sejam dada. Verificam-se tais características no surgimento da força policial em Brasília, durante sua construção no final dos anos 50.
A necessidade de um aparato policial na cidade em construção gerou um impasse jurídico entre o estado de Goiás e a nova capital. Por isso, Israel Pinheiro propôs a Novacap a criação de uma força policial especial para Brasília.
Os componentes daquela guarda, criada às pressas, ou eram analfabetos ou semi-analfabetos e, naturalmente, dado o seu caráter improvisado, sem treinamento específico, não estavam preparados para exercer adequadamente a função policial. (…) O processo de incorporação na GP era relativamente simples, pois não exigia nenhum conhecimento prévio. Era admitido na corporação quem mostrasse coragem e espírito aventureiro. De preferência, os homens mais altos, com estatura média de 1,70 m, ou quem já tivesse servido às Forças Armadas. Era interessante também para a GP os que fossem solteiros ou os que não possuíssem família em Brasília, pois o trabalho exigia dedicação exclusiva. “Melhor ainda, para os que sabiam jogar bola, porque o Cel. Muzzi pretendia formar um time de futebol”. (História da Polícia Civil de Brasília, 1988:21)
Mesmo com o advento do concurso público esses atributos ainda são os mais observados, pois além de idades pré-estabelecidas e altura mínima ainda existem provas de aptidão física de caráter eliminatório. Analisando o estereotipo do candidato a policial, pode-se dizer que o Estado está buscando os mais fortes para dominar os mais fracos, com isso, o Estado demonstra claramente seus objetivos.
Não se pode assim, colocar toda responsabilidade da violência policial e das mazelas na segurança pública nos policiais, que muitas vezes nem percebem o adestramento que sofrem nos cursos de formação, ou as alterações psicológicas oriundas das cobranças excessivas do militarismo ao longo do tempo, que os tornam pessoas insensíveis e violentas sem ao menos se dar conta, para servir a elite dominante que os contratou.
A constituição de uma ideologia específica, tendo no militarismo a sua principal força de atuação, fez com que o “poder de polícia” tomasse o formato da repressão física ao cidadão. Em determinados momentos da história do Brasil esse viés militarista foi acionado de forma a colaborar com a manutenção da elite no poder. Aberturas e fechamentos políticos expressam o ritmo do funcionamento das instituições repressivas, de uma forma geral. (PEDROSO: 2005:174)
Durante os cursos de formação e aperfeiçoamento dos policiais militares de todo país, nas aulas de tiro prático, se ganha mais pontos ao acertar a cabeça e o coração do que em outros pontos menos letais. Esse tipo de treinamento condiciona o policial à sempre matar e nunca a imobilizar. Outro assunto que merece atenção é o fato dos cursos incentivar e justificar o “disparo de advertência”, tiro dado a ermo em sua maioria para cima com o objetivo de advertir o delinqüente em fuga. O resultado não poderia ser pior. O uso da força letal aumenta a cada dia em nosso país.O alto índice de vitimização (fatal ou menos, da polícia e até dos delinqüentes) no trabalho da polícia é sério sintoma de deficiência profissional. É alarmante o alto índice de baixas entre policiais, máxime entre os PMs cujas agruras da atividade policial são agravadas pelas do regime militar (que não deve ser formação prioritária de polícia alguma, só mesmo da “polícia” das polícias: o Exército) e outras mazelas (escalas apertadas, salários, moradias perigosamente promíscuas) geram estresse profissional e suicídios. Em qualquer instituição este sombrio quadro é preocupante, todavia na polícia a todos deveria incomodar. A frustração profissional e familiar, a baixa auto-estima, a subvalorização social são fatores sempre deletérios, contudo quando se trata de policial, por razões óbvias, são potencialmente perigosos: o descontrole mental de um policial, desarmado já é alarmante; quando armado é a negação da razão de ser da polícia. (AMARAL, 2003:50)
Alguns estados têm procurado melhorar a formação de seus quadros policiais cobrando dos candidatos, dentre outros requisitos, a formação universitária. O estado de Goiás inovou cobrando para o para ingresso como oficial na PMGO a graduação de bacharel em direito, mas ainda mantém a formação militar. De acordo com AMARAL,
O policial de nossos dias, mais que adestramento militar (ordem unida, fardamento, preparo físico) que deve ser apenas parte da boa habilitação básica (com reciclagens periódicas) de todo e qualquer policial, carece de melhor formação (não informação, como ocorre hoje) jurídico-humanística (IED, Dir. Constitucional, Criminologia, D. Penal e Processo Penal, Medicina Legal, Cidadania e direitos humanos…), além das demais disciplinas necessárias (básicas ou de complementação). Estas disciplinas jurídicas deveriam ser cursadas, no caso de policial em formação de nível superior, em faculdades oficiais (estaduais ou federais, até por serem gratuitas) de Direito juntamente com os alunos regulares destas, até porque, hoje, é comum que os formados por academias policiais busquem as faculdades de Direito para se graduar e no mais das vezes aproveitando (como já cursadas naquelas academias) muitas disciplinas jurídicas nem sempre concluídas com o mesmo nível de exigência (“aqui formam-se policiais, não advogados!…”). (2003:50)
O sucesso de uma reforma da força policial, visando transformar as relações entre policial e sociedade, depende, portanto, das interações entre a sociedade civil, a sociedade política e as polícias, mas nenhuma mudança ocorrerá se o princípio das corporações, incluindo a formação policial, não sofrer radical transformação. Segundo AMARAL (2003) “Essa mudança é representada pela transição de uma cultura de guerra para uma cultura de paz, de uma visão excludente de mundo para um entendimento dialogal das funções policiais”. Observar-se no pensamento do autor que mesmo em um estado de guerra os soldados devem observar as normas jurídicas de direito internacional existente, fato que muitas vezes é ignorado em nosso Estado Democrático de Direito. Essa transformação passa segundo ele pela formação policial, pois:
A formação do militar, que é essencialmente profissional da guerra, não deve ser confundida com a do policial, mesmo porque o mais cruel dos bandidos não é o inimigo mortal a ser eliminado (senão a ser preso) como é fato normal e decisivo nas guerras. A essência da guerra é a eliminação do inimigo, a essência da missão policial é preservar a ordem pública e prender o criminoso, nada mais que isso…Essa confusão na formação e na rotina operacional do policial explica muitas de nossas crises no sistema de segurança pública brasileiro. (AMARAL: 2003, 61)
Conforme debatido durante todo esse capítulo os problemas de segurança pública e violência policial estão diretamente ligados a formação dos policiais, principalmente dos militares, que são os maiores representantes e reprodutores da cultura que lhes foi imposta durante todo o período de nossa história. O sistema atual necessita urgentemente de uma profunda reestruturação, de maneira que coloque o policial mais próximo do cidadão e da sociedade, os verdadeiros destinatários dos serviços de segurança pública.
Cardoso, Aderivaldo Martins – Desmilitarização das polícias – Uma mudança cultural ou uma questão de sobrevivência? – UCB (2007)
Desmilitarização das polícias: Uma mudança cultural ou uma questão de sobrevivência?
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