Há alguns anos escrevi uma monografia, que considero ruim, intitulada: Desmilitarização das polícias uma mudança cultural ou uma questão de sobrevivência, que me ajudou muito e esclareceu muitas dúvidas que eu tinha quanto ao militarismo.
Devido a grande quantidade de colegas no curso de tecnólogo em segurança pública necessitar de material sobre o tema, origens da polícia, resolvi colocar alguns capítulos desse trabalho. (obs: Esse texto não foi revisado)
1 – Histórico do surgimento das polícias, dando ênfase às militares
Aristóteles já dizia: Ubi societas ibi jus, onde houver sociedade haverá o direito. A convivência entre os homens provocou o surgimento da sociedade, que pode ser definida de maneira simples como todo complexo de relações do ser humano com seus semelhantes. A idéia de sociedade como resultado de um movimento natural do homem remonta ao século IV a.C., a partir da afirmação aristotélica de que “o homem é naturalmente um animal político”. Para esse filósofo, somente as pessoas de natureza vil ou superior optariam pela vida em isolamento de seus iguais.
A necessidade de sobrevivência no meio hostil que o cercava, aliada à necessidade de proteção e de organização fez com que surgissem alguns conflitos entre os homens. A polícia, de modo geral, nasceu de uma necessidade social, com o surgimento dos primeiros núcleos sociais, assim tornou-se um poder de harmonização dos interesses em conflito. A sua existência vem acompanhando a humanidade em sua evolução, e sua finalidade é cada vez mais aceita em meio ao mundo cercado de conflitos e interesses, onde o desrespeito e a falta de valorização do homem pelo homem se acentua a cada momento.
A atividade policial pode ser verificada em quase todas as organizações políticas que conhecemos, desde as cidades-Estado gregas até os Estados atuais. Mas a idéia que temos hoje é resultado dos fatores históricos de transformação organizacional e estrutural pelas quais as polícias passaram ao longo do tempo.
A palavra polícia é originária da palavra grega polis, o núcleo básico da convivência humana, usada para descrever a constituição e organização da autoridade coletiva, que muitas vezes se alia à palavra política, relativa ao exercício dessa autoridade coletiva, o que deveria fazer com que ambas buscassem o bem da coletividade. A polícia no Brasil está sempre atrelada à política, pois em sua maioria está sob o comando dos governadores. Mesmo em um estado democrático de direito a concepção de polícia como instrumento de manutenção da ordem e preservação da segurança pública praticamente sem limitações, não muda. Assim, podemos perceber que a idéia de polícia está intimamente ligada à noção de política. Segundo COSTA, “não há como dissociá-las. A atividade de polícia é, portanto, política, uma vez que diz respeito à forma como a autoridade coletiva exerce seu poder”. (2004:35)
Portanto, o policiamento é uma atividade dinâmica e tem origem na necessidade comum de segurança da comunidade, permitindo-lhe viver em tranqüilidade pública, pelo menos aparente, pois a polícia apenas nos proporciona “sensação de segurança”. Considera-se para efeitos desse trabalho, a priori, a definição dada por David BAYLEY. O autor define as instituições policiais como “aquelas organizações destinadas ao controle social com autorização para utilizar a força, caso necessário”. (2006:20)
Ele afirma ainda que o uso da força física, real ou por ameaça, para afetar o comportamento humano é a competência exclusiva da polícia. Levando-se em conta a lacuna deixada com relação ao papel das Forças Armadas nesse contexto, BAYLEY acrescenta que: “a diferença entre as organizações policiais e as Forças Armadas recai sobre o tipo de situação na qual normalmente as polícias são empregadas. Enquanto as Forças Armadas são empregadas no controle social em situações excepcionais, e nos casos de regimes democráticos dentro de determinados limites, as polícias realizam essa tarefa cotidianamente”.(2006:20)
A polícia em nosso país teve suas origens no Rio de Janeiro no início do século XIX, passando por uma série de experiências institucionais. As Forças policiais foram criadas, transformadas e extintas, suas competências foram alteradas e suas funções, reinterpretadas ao longo da história.(COSTA, 2004:86)
As primeiras forças policiais foram criadas antes mesmo da independência do Brasil. Foi nessa época que surgiram as duas instituições que conhecemos atualmente: a Polícia Militar e a Polícia Civil. Esse processo foi resultado da instabilidade política da época, principalmente, as disputas políticas entre o poder central e as lideranças locais, bem como pela realidade social e econômica da época. Como será visto mais à frente esse modelo iniciado no império, e que perdura até hoje, com duas polícias e sem o ciclo completo de policiamento passou por várias transformações, mas sem nunca perder sua essência.
Desde sua origem, a atuação da organização policial dividiu-se em funções: a prática civil estava na prevenção e repressão ao crime, enquanto a militar identificava-se com a defesa da pátria e repressão aos movimentos de oposição política e insurreições. Enfim, a ordem deveria figurar-se em decorrência da preservação da Colônia face às pressões internas (ataques indígenas e movimentos de independência), pressões externas (invasão de outras nações européias) e, principalmente, a manutenção das relações internas de produção colonial (escravidão). (PEDROSO, 2005:67)
Em 1808 foi criada a Intendência-Geral de Polícia da Corte que tinha entre outras atribuições a investigação dos crimes e a captura dos criminosos. O intendente-geral de polícia ocupava o cargo de desembargador e tinha amplos poderes, podendo além de prender, também julgar e punir aquelas pessoas acusadas de delitos menores. Em resumo o intendente-geral era um juiz com funções de polícia[1]. Outra instituição criada no século XIX foi a Guarda Real de Polícia. Criada em 1809 e organizada militarmente, a Guarda Real possuía amplos poderes para manter a ordem e era subordinada ao Intendente-Geral de polícia. Seus recursos financeiros eram provenientes de taxas públicas, empréstimos privados e subvenções de comerciantes locais.
A militarização das organizações policiais foi à solução encontrada para a formação da instituição no Brasil. A ideologia, sob esse aspecto, tornou-se fundamental para a manutenção de um pensamento que, por sua vez, respaldou a atuação bélica contra a população. (PEDROSO, 2005:31)
Em 1831 em decorrência de um grupo de amotinados a Guarda Real foi extinta e seus oficiais redistribuídos pelas unidades do Exército e os praças, dispensados do serviço. Em seu lugar foi criado o Corpo de Guardas Municipais Permanentes, que teve como um de seus primeiros comandantes o então tenente-coronel Lima e Silva, futuro Duque de Caxias e patrono do Exército. Posteriormente em 1866 o Corpo de Guardas Municipais Permanentes ganhou a denominação de Corpo Militar de Polícia da Corte.
Os castigos disciplinares tornam-se por demais rígidos frente às vantagens do policial na corporação. Um exemplo pode ser dado ao observarmos as funções atribuídas à polícia local, encarregada de prender e capturar escravos. Esse corpo policial era composto por voluntários. Muitos deles, por não terem outra oportunidade de trabalho, optavam pela “carreira policial”. Em muitas ocasiões essa corporação era acusada de indisciplina e falta de instrução técnica, o que acarretava um patrulhamento deficiente, alem do número de alistados ser insuficiente para as missões a ela atribuídas. Quanto à situação da tropa, esta não tinha possibilidade de mobilidade social, devido aos baixos soldos recebidos e, assim, o prestígio social também era baixo, já que a “profissão” de policial era menosprezada como fator de ascensão social. (PEDROSO, 2005:78)
De acordo com COSTA, as polícias “ocupavam-se apenas de uma pequena parte do controle social. Dirigiam suas atenções para a vigilância das classes perigosas, isto é, dos escravos, dos libertos e dos pobres livres. Na prática, suas atribuições concentravam-se na captura de escravos fugitivos, na repressão aos tumultos de rua, aos pequenos roubos e furtos e a outras condutas sociais indesejadas, como capoeira”. (2004:90)
A composição das polícias no Brasil foi articulada prioritariamente de forma a conter a desordem e a imoralidade que assolavam as cidades brasileiras, principalmente a capital federal. Por outro lado, procurou-se também conter todo e qualquer tipo de distúrbio de origem político-social que viesse a desestabilizar o poder nos estados brasileiros. (PEDROSO, 2005:31)
Com a proclamação da República, em 1889, inaugurou-se uma nova ordem política e houve a reorganização do aparato repressivo estatal. Mesmo que não tenha alterado fundamentalmente a composição da classe dominante, a nova ordem política modificou consideravelmente as relações entre as elites políticas existentes, e também alterou as relações entre as classes dominantes e subalternas. COSTA afirma que a abolição da escravidão, a instauração de um federalismo altamente descentralizado e o rápido crescimento urbano das principais cidades brasileiras exigiu profundas modificações nas instituições policiais.
Novos instrumentos e mecanismos de controle social precisaram ser desenvolvidos. Sob forte influência do direito positivo, o Código Penal foi reformado em 1890. Uma vez que a ênfase deveria recair sobre o criminoso e não sobre o ato criminal, o novo código passou a dar maior importância às práticas comuns das ditas classes perigosas como vadiagem, prostituição, alcoolismo e embriaguez. A idéia era permitir um melhor controle dos grupos perigosos, na medida em que seus hábitos passaram a ser considerados crime.(COSTA, 2004:91)
Com o crescimento em ritmo acelerado das cidades e com a conseqüente expansão das classes perigosas urbanas, buscou-se ampliar a capacidade de vigilância da polícia. Para isso, foi realizada uma reforma em 1907 que criou o Serviço Médico-Legal e o Serviço de Identificação. Criou-se em 1912 a Escola de Polícia, e conseqüentemente, o Corpo de Investigação, encarregado como o próprio nome já diz, da investigação e vigilância de hotéis, parques, comícios e da área portuária, ou seja, lugares normalmente freqüentados pelas classes perigosas.
Em 1915, o Corpo de Investigação foi transformado em Inspetoria de Investigação e Capturas e em 1920 surge à designação de Polícia Militar.
A Polícia Militar do Distrito Federal cada vez mais se assemelhava ao Exército. Incorporou os regulamentos militares, bem como a programação de inspeções, revistas, instrução e serviços. Esses regulamentos tratavam minuciosamente dos serviços dos policiais, das obrigações de comando e do cerimonial militar. Além disso, a rígida hierarquia exigia forte disciplina dentro dos quartéis. Os policiais militares eram investidos de amplos poderes para o cumprimento das suas tarefas junto à população. Era constante a tensão entre a missão de cumprir a lei e a tarefa de zelar pela manutenção da ordem. Neste caso, o recurso à violência e à arbitrariedade eram freqüentes. (COSTA, 2004:93)
As tensões existentes entre os governos estaduais e federal e as disputas entre a capital e o interior pela hegemonia política marcou profundamente a reorganização das polícias estaduais. Isso explica porque os governadores são os verdadeiros comandantes das polícias nos estados, pois a influência deles deveria ser traduzida em força, traduzida pelo fortalecimento do aparato policial. COSTA afirma, que essa tensão entre os governos central e estadual acentuaram o caráter militar das organizações policiais.
A disciplina e militarização das forças policiais esboçadas desde as primeiras corporações do século XVII aprimoraram-se com a vigência do novo regime político instaurado no final do século XIX e aprimorado no período republicano com a vinda da Missão Francesa. A ordem da tropa passará a ser vista como garantidora da segurança pública. (PEDROSO, 2005:79)
A polícia militar de São Paulo, primeira instituição militar a receber uma missão estrangeira a fim de modernizar sua estrutura e treinamento, militarizou-se no início do século XX, com a vinda da Missão Francesa.
A partir da Missão Francesa (1906-1914), a rigidez na condução da tropa tornou-se um ponto fundamental para a organização disciplinar, incorporada como premissa básica do papel desempenhado pelo policial militar. A assimilação da disciplina passou a fazer parte dos atributos ligados ao aprendizado da profissão e, além disso, o arcabouço de conhecimentos adquiridos no interior da instituição subsidia a doutrina de como socializar um civil em soldado. Sob essa ótica socializadora, o processo de transformação do aparato policial tornou-se constitutivo de um “saber próprio e institucionalizado”, compondo um universo ideológico de produção de conhecimento aliado às práticas de novas técnicas. Mas, mais do que isso, o policial (ou soldado) deveria ser, acima de tudo, um militar e agir como tal. Assim, a hegemonia da corporação policial militar acabou por moldar um ideário de como deve ser o policial: militar, por excelência. (PEDROSO, 2004:85)
A Força policial do Estado de São Paulo cresceu tanto em organização e poderio que era capaz de se opor militarmente às tropas federais. Segundo a professora Regina Célia PEDROSO “a polícia produziu ideologia própria, profissionalizou-se e diversificou sua atuação de acordo com o momento político, e cooptou com o pensamento estatal acerca da perseguição aos vários tipos de ‘inimigos’ estabelecidos nas diversas legislações brasileiras.” Ação policial deve ser observada pelo prisma de sua atuação concreta, dos desígnios atribuídos e da forma com que a corporação comportou-se frente ao trabalho realizado no dia-a-dia. A autora discorre ainda que:
Durante as primeiras décadas do século XX pudemos constatar a estruturação nos moldes ideológico e militar da autuação policial, viés este que continuou nas décadas posteriores e também durante os governos militares (1964-1985). O que diferenciou a atuação repressiva durante a ditadura militar das dos governos das primeiras décadas do século XIX foi que a ditadura utilizou o Exército como principal força repressiva, enquanto o Deops serviu de coadjuvante no cenário político-repressivo, invertendo a preponderância que a polícia teve ao longo das primeiras décadas, como órgão monopolizador e centralizador da ordem pública. No auge da ditadura a Policia militar de São Paulo esteve sob a fiscalização do Ministério do Exército, que por meio da Inspetoria Geral das Polícias Militares, encarregou-se de vigiar e controlar o aumento de efetivos, o material bélico utilizado e as alterações na estrutura organizacional, além de interferir na elaboração dos currículos dos cursos de formação dos policiais. Assim, atrelada a uma ideologia de Estado autoritário, a Polícia Militar nasceu sob a égide da repressão política, além de exercer o poder da vigilância sob o cidadão comum, constituindo assim uma formação ideológica própria. (2005:148)
No caso do Distrito Federal, a exemplo do império, as polícias estavam subordinadas ao Ministro da Justiça, o que perdurou até 1960 quando a capital foi transferida para Brasília. A partir da mudança da capital federal, a organização administrativa do Distrito Federal passou a ser regida pela Lei nº 3.751, de 13 de abril de 1960. Foi criado o Serviço de Polícia Metropolitana integrado no Departamento Federal de Segurança Pública – DFSP, subordinado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, que tinha poder de requisitar servidores federais para integrar provisoriamente os quadros do Serviço de Polícia Metropolitana e de utilizar, mediante convênio, servidores do Estado[2]. É importante ressaltar que a polícia sofreu algumas alterações durante a rápida “experiência democrática” pela qual o país passou antes do golpe militar de 1964. Em Brasília, por exemplo, encontramos já nessa época a tentativa de implementar o chamado policiamento comunitário e o ciclo completo de policiamento, esse por meio de uma polícia única.
Em face destas mudanças, o DFSP passou a ter com a SPM comando único em Brasília, o que proporcionou mais operacionalidade, haja vista o Superintendente de Polícia Metropolitana ter centralizado em suas mãos o controle de todo policiamento. (História da Polícia Civil de Brasília, 1988:51)
Com o golpe militar de 1964 mais uma vez o aparato policial passou por transformações na tentativa de adequar a força repressiva ao pensamento castrense. Em Brasília, conforme a História da Polícia Civil de Brasília:
A estrutura organizacional do DFSP manteve-se sem alterações até 16 de novembro de 1964, quando então foi editada a Lei nº 4. 483/64, que retornava os moldes tradicionais ao Departamento Federal de Segurança Pública, criando a Polícia Federal e a Polícia do Distrito Federal com seus órgãos afins, ou seja, a Divisão de Polícia Judiciária, a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros do Distrito Federal. A Lei nº 4. 483/64 extinguiu a Polícia Única em Brasília (em experiência); no entanto, conforme seu artigo 16, § 2º, colocou na dependência de uma lei especial a organização da Polícia Federal e da Polícia do Distrito Federal. A nova estrutura da Polícia do DF, entretanto, só seria instituída no ano subseqüente com a promulgação da Lei nº 56.511, de 28 de junho de 1965. (1988:56)
Os militares ao retornarem ao poder restabeleceram a ideologia castrense, acabaram com a polícia única em Brasília e com a possibilidade do ciclo completo do policiamento no país.
[1] Maiores detalhes ver: História da Polícia Civil de Brasília, 1988 e COSTA, 2004.
[2] Para se obter maiores detalhes ver História da Polícia Civil de Brasília.
Cardoso, Aderivaldo Martins – Desmilitarização das polícias – Uma mudança cultural ou uma questão de sobrevivência? – UCB (2007)