A reflexão de Luiz Eduardo Soares é fantástica. Não é somente no meio “civil” que não querem “conversar sobre polícia”, no meio policial também existe o “vamos deixar para depois”, “deixa de ser teórico”, “precisamos da prática”, e de fato continuamos “práticos” na arte de “fazer segurança pública”. Vale a pena refletir com ele: “Que tipo de polícia nós temos?”, “Que tipo de polícia nós queremos?”, “É possível?”, reflitam…

Há 30 anos peço um tempo no final das reuniões realizadas no âmbito dos movimentos, dos partidos e das associações, para compartilhar uma pergunta e introduzir um novo tema na pauta: Que modelo de polícia devemos propor para a sociedade brasileira que se democratiza e luta por justiça? Qual seria o modelo menos problemático, o mais adequado, de nosso ponto de vista, nós que defendemos os direitos humanos? Qual modelo facilitaria o controle externo, a transparência, o respeito aos direitos, inclusive dos policiais, que são trabalhadores e cidadãos?

Meus amigos e minhas amigas, parceiras da longa travessia, respondem: “Fica pra próxima. Não há tempo agora”. Na próxima, levanto o braço e cobro a promessa. “Fica pra depois, companheiro, temos coisas mais importantes e urgentes”. No final, volto a cobrar. “Hoje não, companheiro”. Há sempre outros assuntos mais importantes e urgentes. Tudo bem. É verdade. Há tanta coisa mais importante do que polícia, até mesmo para a segurança pública, até mesmo para os policiais. Concordo. Vamos em frente. Fica pra próxima.

E assim passaram-se 30 anos. Careca, velho, com menos energia do que antes, cá estou, no final da sala, no final da fila, erguendo a mão, pedindo o favor aos parceiros de caminhada, agora tão mais jovens do que eu: sei que há muita coisa mais importante, inclusive para a segurança, mas em algum momento precisamos falar sobre polícia. Vocês aceitam discutir este tema? “Na próxima reunião, companheiro, fica pra próxima”.

E assim, as esquerdas e as forças democráticas, os movimentos sociais, as entidades da sociedade civil e os partidos políticos que se querem transformadores jamais apresentaram ao país uma proposta completa e realista para as polícias. Denunciaram sim, sempre, e com toda razão, as violações. Propostas objetivas para reforma do modelo policial, nunca formularam, ainda que alguns indivíduos –bravo !– o tenham feito. Os conservadores não precisam apresentar nada. Sua proposta está aí nas ruas, liquidando gerações futuras, massacrando jovens negros nas periferias e envolvendo policiais que morrem à tôa na guerra fratricida de pobres contra pobres, com o beneplácito do Estado, o patrocínio das elites e a benção da sociedade.

Daqui a alguns anos, imagino que haverá alguém no fundo da sala, onde eu costumava sentar-me. Alguém que sequer me conheceu levantará a mão: Vamos conversar sobre polícia? Mas talvez não seja preciso. Talvez o futuro liberte-se desse passado de omissão e silêncio, fruto de preconceitos e mal-entendidos. Talvez as pessoas mais sensíveis à questão dos direitos, às lutas anti-racistas, anti-homofóbicas, anti-misóginas, talvez os democratas se convençam de que, mesmo havendo temas tão mais importantes, inclusive para a segurança pública, é absolutamente injustificável amaldiçoar um deles: polícia.

 Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública e coordena curso sobre segurança pública na Universidade Estácio de Sá. Seu livro mais recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das Letras, 2015).

 
Texto originalmente publicado no justificando.com (https://www.mudamos.org/temas/seguranca-publica)
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