Ciclo Completo

Laranjas cortadas não param em pé »

Por: Marcos Rolim

As recentes greves e mobilizações de policiais em vários Estados são  um reflexo tardio de uma crise profunda que ultrapassa em muito as  reivindicações salariais. Para se compreender a natureza dos fenômenos  em curso, é preciso, primeiramente, observar que as duas polícias que  atuam nos Estados (Civil e Militar) possuem suas origens respectivas em  “campos” (no sentido de Bourdieu) determinados – que não representam  especificamente os desafios da segurança pública: as Polícias Civis  emergiram do campo do Direito, e as Polícias Militares, do campo da  Defesa. Suas origens remontam à criação, em 1808, da Intendência Geral  de Polícia da Corte e, um ano após, da Guarda Real da Polícia da Corte,  por Dom João VI.

Essas estruturas, é oportuno lembrar, não  surgiram para o enfrentamento das dinâmicas criminais ou para a garantia  dos direitos da cidadania, mas – como ocorreu também na grande maioria  dos Estados modernos – para atender à necessidade de contenção de  distúrbios sociais antes enfrentados diretamente pelas Forças Armadas.  Por conta desse pertencimento original, as instituições policiais foram  “mimetizando” os campos da Defesa e da Justiça. Assim, durante muito  tempo, as polícias estaduais atuaram como se exércitos fossem. A Força  Pública de São Paulo contou com artilharia aérea e esteve envolvida em  conflitos em vários Estados. Em 1905, essa polícia contratou a Missão  Francesa, recebendo dela instrução militar, 12 anos antes do Exército.  Em 1932, travou guerra contra o Exército, disputa que Getúlio Vargas só  venceu por contar com o apoio da polícia mineira. Isso estimulou a  Constituição de 1934 a declarar as forças públicas estaduais como  “forças auxiliares e de reserva do Exército”, disposição que permanece  até hoje.

De outra parte, as polícias civis transformam-se em  “filtros” do Poder Judiciário, selecionando os fatos que mereceriam  apreciação dos magistrados. De novo, a força mimética, com o inquérito  policial operando como um “pré-processo” penal, em que se forma a culpa  sem as garantias do contraditório e da ampla defesa – em desrespeito,  portanto, à ordem igualitária que segue sendo declarada pela lei, mas  violada pelo modelo. O inquérito policial, assinale-se, é outra  característica do nosso modelo que se afasta da experiência  internacional e que é, sabidamente, contraproducente.

Praças das  PMs identificam no espelhamento de sua corporação com as Forças Armadas  um dos problemas mais sérios da instituição. A maioria deles, inclusive,  desejaria uma polícia desmilitarizada. Já a maioria dos oficiais preza o  reflexo e atribui destacada importância às noções de disciplina e  hierarquia típicas do Exército. De outra parte, os integrantes das  carreiras iniciais das PCs não se identificam como “operadores do  Direito”; o que demarca uma diferença plena de repercussões com a  autoimagem dos delegados, bacharéis em Direito, que lutam pela  equiparação funcional com as chamadas “carreiras jurídicas”.

Importa  perceber, então, que – em contraste com as nações modernas – os  esforços pela “policialização” das polícias (conforme a expressão de  Karnikowski) e pela formação de um “campo da segurança pública” ainda  não foram concluídos no Brasil. Como assinala Mateus Afonso Medeiros,  “está incompleta a conquista democrática da separação institucional  Polícia-Justiça e Polícia-Exército”.

O que há de mais notável no  modelo de polícia construído no Brasil, entretanto, deriva da opção pela  repartição do ciclo de policiamento. A instituição policial moderna em  todo o mundo desempenha suas funções a partir do que se denomina “Ciclo  Completo de Policiamento”; em outras palavras: as polícias modernas são  instituições profissionais cujo mandato envolve as tarefas de 1)  manutenção da paz pública, 2) garantia dos direitos elementares da  cidadania, 3) prevenção do crime e 4) apuração das responsabilidades  penais. Mas, no Brasil, se entendeu que uma das polícias – a Militar –  seria encarregada da “prevenção”, pela presença ostensiva do  patrulhamento fardado e outra – a Civil – seria encarregada da  investigação criminal. Assim, a especialização entre patrulheiros e  investigadores, em todo o mundo feita dentro das polícias, foi aqui  dividida entre duas instituições com culturas e estruturas completamente  distintas. O resultado é que nunca tivemos duas polícias nos Estados,  mas duas “metades de polícia”, cada uma responsável por metade do ciclo  de policiamento.

A bipartição do ciclo impede que os policiais  encarregados da investigação tenham acesso às informações coletadas  pelos patrulheiros. Sem profissionais no policiamento ostensivo, as  Polícias Civis não podem contar com um competente sistema de coleta de  informações. Não por outra razão, recorrem com tanta frequência aos  “informantes” – quase sempre pessoas que mantêm ligações com o mundo do  crime, condição que empresta à investigação limitações estruturais e,  com frequência, dilemas éticos de difícil solução. As Polícias  Militares, por seu turno, impedidas de apurar responsabilidades  criminais, não conseguem atuar efetivamente na prevenção, vez que a  ostensividade – ao contrário do que imagina o senso comum – não previne a  ocorrência do crime, mas o desloca (potenciais infratores não costumam  praticar delitos na presença de policiais; mas não mudam de ideia, mudam  de local).

Patrulhamento e investigação são, na verdade, faces  de um mesmo trabalho que deve integrar as fases do planejamento da ação  policial, desde o diagnóstico das tendências criminais até a formulação  de planos de ação, monitoramento e avaliação de resultados. No Brasil,  isso se tornou inviável. Mas, como laranjas cortadas ao meio não  permanecem em pé, as polícias intuem que precisam do ciclo completo (da  outra metade). Por isso, historicamente, ambas procuram incorporar as  “prerrogativas de função” que lhes faltam, o que tem estimulado a  conhecida e disfuncional hostilidade entre elas, traduzida pela ausência  de colaboração e, não raro, por iniciativas de boicote. Não satisfeito  com a bipartição do ciclo, nosso modelo de polícia – também de forma  inédita – ainda estabeleceu diferentes “portas de entrada” para cada  polícia, o que gerou novo “corte” – agora horizontal – dentro das  corporações: nas PMs temos duas partes, oficiais e não oficiais, e nas  PCs, delegados e não delegados. Entre estas “partes” de polícia há um  abismo de prestígio, poder, formação e remuneração que é, cada vez mais,  insuportável. A ausência de carreira única em cada polícia, com efeito,  inviabiliza a instituição policial brasileira, porque reafirma a  desigualdade, estimula o autoritarismo e consagra privilégios;  promovendo, muito compreensivelmente, uma “guerra” não declarada dentro  das corporações. Também por isto, nossas polícias não conseguem  completar seus efetivos e parcelas expressivas de policiais apenas  aguardam oportunidade para deixar suas instituições. O problema da  evasão, é claro, vincula-se também aos baixos salários. Esta realidade,  por sua vez, agencia outras distorções, entre elas o “bico” e a  formatação de jornadas absolutamente irracionais para a lógica do  serviço público,  mas funcionais para a prevalência do segundo emprego. Assim, por  exemplo, jornadas de 24 por 72 horas (ou seja: plantões de 24h seguidos  por três dias de folga) tornaram-se comuns nas polícias civis no Brasil,  oferecendo exemplo de como se impedir que uma instituição funcione  minimamente.

Policiais com um segundo emprego, entretanto,  assumem vários riscos. Um estudo de Maria Cecília de Souza Minayo e  Edinilsa Ramos Souza revelou que, dos 4.518 policiais mortos e feridos  por todas as causas, de 2000 a 2004, no Estado do RJ, 56,1% foram  vitimados durante as folgas. O “bico”, entretanto, é só a ponta de um  iceberg de distorções que tendem a se avolumar e cujo desfecho aponta  para a formação das milícias – de longe o mais sério problema de  segurança pública em alguns Estados, com destaque para o Rio.

Mas  a violência sofrida pelos policiais não lhes ameaça apenas desde o  “exterior”. O amplo estudo que realizamos com Silvia Ramos e Luiz  Eduardo Soares (disponível em http://bit.ly/x4PWnf) chamou atenção para o  fato de que parte expressiva da violência sofrida pelos profissionais  da segurança pública ocorre no interior das suas corporações. Assim, por  exemplo, 20% dos policiais brasileiros são vítimas de tortura em seus  processos de “formação”; 53,9% deles já foram humilhados pelos  superiores hierárquicos e mais de um quarto dos policiais entende que  sua corporação já lhes negou ou cerceou o direito de defesa. Além disso,  61,1% deles afirmaram já terem sofrido tratamentos discriminatórios  pelo fato de serem policiais civis ou militares, bombeiros, guardas  municipais ou agentes penitenciários e pelo menos 16% das mulheres que  atuam nestas instituições já foram vítimas de assédio sexual em suas  corporações.

Desrespeitados como cidadãos, obrigados a um  cotidiano embrutecedor e sem qualquer apoio psicossocial, desvalorizados  profissionalmente, desestimulados ao estudo e à reflexão e, não raro,  “adestrados” pelo autoritarismo, estes policiais irão para as ruas nas  piores condições, tendendo a reproduzir a mesma desconsideração em suas  relações com o público, destacadamente quando tratarem com pobres e  marginalizados. O círculo de estupidez e ineficiência, então, se  completa com os resultados conhecidos.

No passado, alguns dos  críticos do modelo levantaram a bandeira da unificação das polícias. Uma  sugestão plena de boas intenções, mas completamente equivocada.  Múltiplas estruturas de policiamento conformam uma das características  mais importantes dos modelos contemporâneos de segurança pública na  grande maioria dos países democráticos. Inglaterra e País de Gales  possuem 43 forças policiais autônomas; a Noruega possui 54 polícias  distritais; a Escócia, oito polícias regionais; os Estados Unidos  possuem pelo menos 25 mil polícias autônomas; a Bélgica, 2.359; o Canadá  tem 450 polícias municipais, além de várias forças provinciais e da  Royal Canadian Mounted Police. Poucas nações possuem polícia única (Sri  Lanka, Cingapura, Polônia, Irlanda e Israel). Polícias menores são mais  facilmente administradas e avaliadas. São também mais ágeis e tendem à  especialização. Instituições policiais enormes, pelo contrário, são de  difícil manejo e supervisão. Também por isso, eventual unificação das  polícias no Brasil tenderia a somar os defeitos das instituições que  temos, subtraindo suas virtudes. Por fim, a unificação agregaria risco  considerável à democracia, incluindo a possibilidade de “emparedamento”  do Estado por demandas corporativas.

O caminho da reforma, pelo  contrário, deve estimular o surgimento de novas instituições policiais,  além de integral autonomia aos Bombeiros e às perícias; tendência que –  apesar dos limites constitucionais – já se impõe no Brasil, que formou  uma Guarda Nacional e cujos municípios têm constituído Agências de  Fiscalização de Trânsito e Guardas Municipais (que, embora sem este  nome, polícias são). O fundamental é que todas elas tenham o ciclo  completo de policiamento (o que no Brasil só a Polícia Federal possui) e  carreiras únicas (uma única porta de entrada em cada polícia) como no  resto do mundo. Esta é a base para que possamos ter polícias eficazes e  para que as noções de segurança sejam fundadas em evidências científicas  e não na cultura institucional do atraso e do preconceito. Este é  também o caminho para que tenhamos polícias comunitárias acostumadas ao  controle social e aos processos de prestação de contas e  responsabilização pública (accountability).

Para que a existência  de várias polícias com ciclo completo não seja redundante e não  implique novas disputas, deve-se optar por um dos seguintes caminhos: ou  se estabelece uma base distrital para cada polícia (modelo britânico)  ou definimos responsabilidades distintas para as polícias de acordo com  tipos criminais (o que caracteriza, em grande parte, a experiência  americana). Tendo presente a história centenária das polícias militares e  civis no Brasil, seria de todo desaconselhável que elas fossem  reorganizadas para atuar a partir de bases distritais exclusivas. O mais  adequado seria a divisão de vocações por tipos penais. Assim, por  exemplo, as Polícias Civis poderiam tratar de crimes contra a vida,  sequestros, crimes sexuais, tráfico de drogas e crimes do “colarinho  branco”, enquanto as Polícias Militares poderiam cuidar dos delitos  patrimoniais (furtos e roubos) e da manutenção da paz pública. Em um  sistema do tipo, as Guardas Municipais poderiam responder aos conflitos  de “baixa densidade” como arruaça, vandalismo, disputas entre vizinhos,  importunação ao sossego, violência doméstica etc. Uma divisão do tipo  tornaria possível que tivéssemos um sistema de segurança pública no  Brasil, encerrando a pré-história das polícias brasileiras.

Reformas  desta natureza exigem, por óbvio, um amplo esforço político, vez que  nosso modelo de polícia foi, inacreditavelmente, inserido na  Constituição Federal, notadamente em seu art. 144. Tendo em conta a  destacada inaptidão do Congresso Nacional para reformar o que quer que  seja e o notório desinteresse do governo federal sobre este tema,  deve-se reconhecer que as perspectivas não são alentadoras. Os  governadores poderiam constituir esta agenda. Afinal, é nos Estados que a  crise se instala e – observados princípios gerais – se deveria permitir  margem de autonomia aos entes da federação para que pudessem reformar  e/ou instituir suas próprias polícias. Seja como for, nunca a crise do  modelo de polícia no Brasil foi tão evidente. O que não nos garante  qualquer solução. Afinal, convivemos com uma realidade política na qual  tem sido preferível não pensar, não discutir e não fazer. Só por isso,  as greves e protestos dos policiais têm um sentido histórico. Em seus  acertos e em seus erros, as mobilizações introduziram um dado novo: os  policiais exigem mudanças. Resta saber se alguém saberá interpretar este  sentimento.

Marcos Rolim é Professor da cátedra de Direitos Humanos do IPA, autor de “A Síndrome da Rainha Vermelha” (Zahar/Oxford University, 2006)

Fonte: Zero Hora

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