Polícia como Profissão: Controlando o Poder Discricionário
Por Daniela Araújo Lana, aluna de especialização em Segurança Pública e Cidadania.
MONJARDET, Dominique. O Que Faz a Polícia. São Paulo: EDUSP, 2003 (cap. 3).
O autor destaca três correntes de análise que buscaram definir o papel da polícia. Para a primeira, progressista, a polícia é usada pela elite dominante para controlar a classe dominada através do uso da força física quando se esgotam os outros meios de dominação. A segunda, conservadora, define a polícia como uma instituição especializada em aplicar a lei em favor da sociedade, independente de quem seja o delinqüente. Já a terceira, interacionista, leva em conta o entrelaçamento de vários interesses: os anseios sociais, os político-governamentais, os legais e os próprios dos policiais. Três são os tipos de interesses que formam a cultura profissional policial destacados por Monjardet, quais sejam, os materiais, os corporativos e os profissionais. Os interesses materiais são os mais amplos, básicos e reivindicados por todo tipo de trabalhador organizado, já que dizem respeito às condições salariais e de emprego, de instalações físicas dignas, escalas de serviço menos desgastantes física e psicologicamente e que também proporcionem tempo livre hábil para lazer, interações sociais e familiares e para estudo, portanto mais eficientes e eficazes como um todo. Os interesses corporativos estão relacionados a tudo que envolve o trabalho policial em si, em suas especificidades, naquilo que o torna diferente. O autor cita como exemplo as várias modalidades de policiamento (a pé, ciclístico e motorizado) como, tanto uma evolução dos meios de locomoção que seria reflexo da ordem social de cada época, quanto uma demonstração de melhora gradual das condições de trabalho da atividade policial em especial. Apesar da pesquisa se referir a década de 1980, até hoje, entre os policiais, se considera o policiamento motorizado como o mais “confortável” mesmo que possa ser menos eficiente que o policiamento a pé para o controle da criminalidade, isto é, ele poupa mais fisicamente o guarda em relação aos outros dois tipos e possui melhor intercomunicação através do rádio e demais equipamentos da viatura, mas também é o que mais distancia o policial do cidadão e de seus problemas. Esta noção corporativa é tão forte que quando algum governante ou mesmo a comunidade pedem o retorno do policiamento a pé, os policiais resistem, argumentando que isto é retrocesso, desqualificação e degradação dos ganhos da classe. Os interesses profissionais estão ligados à valorização profissional do trabalho policial, isto é, a tudo que não diga respeito a ganhos econômicos ou lucro, mas sim ao respeito e reconhecimento de sua autoridade e ao desenvolvimento de estratégias motivacionais ligadas à missão, como recompensas internas e externas, medalhas, folgas, elogios formais e informais pela comunidade, pela mídia e por superiores e colegas, conversas, aconselhamentos, etc. Como a principal tarefa policial reconhecida socialmente é a repressão contra o crime, o policial que prende, apreende e investiga mais criminosos tem status de melhor profissional e estas funções são mais valorizadas. Tarefas administrativas ou o policiamento preventivo (incomensurável) são desprestigiados. Apesar de historicamente recente, a luta contra o crime se tornou central no papel da polícia na sociedade porque esta é uma tarefa muito necessária e perigosa, por isso, feita por poucos.
O autor destaca que é incompleta qualquer explicação sobre a profissão policial que não leve em conta sua “cultura profissional”, em que a atuação de cada corporação e de cada membro se dá pelo entrelaçamento de fatores legais, discricionários, simbólicos, morais, culturais, intelectuais, emocionais, psicológicos, normativos, entre outros, diferentemente de outras profissões estritamente técnicas. Apesar de possuir traços comuns e gerais, como a certeza de que se deve considerar “a relação com a lei e a relação com o outro” (pág.169), esta cultura não é homogênea nem consensual, o que estudos e pesquisas em várias instituições de vários países mostram. Monjardet começa então a mostrar os resultados de uma pesquisa com a Polícia Francesa entre 1982 e 94. Dentro da percepção de aplicação da lei, os policiais tem direcionamentos diferentes, quais sejam, uns são estritamente legalistas, outros veem a lei como uma maneira eficiente de organização imposta a todos na sociedade e outros ainda a compreendem como um acordo que reflete os valores e a moral de indivíduos que escolheram conviver, portanto, escolheram suas regras sociais e as praticam com satisfação e ainda há os que acreditam que todas estas concepções tem coerência e podem ser igualmente acionadas, dependendo das situações. Quando se fala da relação com o outro, seja com o colega ou não, as concepções variam entre uma valorização mais forte do papel da polícia de proteger os interesses do Estado ou de controlar e lutar contra a criminalidade ou ainda de garantir e proteger os interesses dos cidadãos. O estudo mostra tipologias que foram por ele estabelecidas com base em características coletadas nas numerosas respostas dadas pelos policiais nos questionários. Apesar de coerentes, ele próprio afirma que “toda tipologia força as diferenças e as sistematiza além do discurso dos atores e tem a função de destacar as linhas gerais ou opostas que orientam o pluralismo que se procura na cultura profissional policial” (pág. 178). Isto posto, surgem três noções de polícia que ele chama de “ideologias policiais”, pois salientam uma interpretação própria da função social da atividade policial exercida, quais sejam, a comunitária, centrada na aproximação dialógica com a população; a que combate o crime a qualquer custo e a de ordem, que é bastante legalista e por isso não dialoga, apenas aplica e cumpre a lei. Essas ideologias são complexas, pois são perpassadas por outros níveis de pluralismo da cultura policial, por exemplo, níveis de vocação, afinidade ou desdém com o ofício, de integração ou distanciamento em relação ao outro (Estado, sociedade, criminosos, etc) e de aceitação, reivindicação ou recusa das missões e funções delegadas à profissão policial.
O autor começa então a explicar que os policiais são profissionais assalariados, e como tal, possuem relação de subordinação a quem os paga, mas tem autonomia técnica e funcional, pois possuem competências para as quais são treinados visando a eficiência. Todavia, possuem dilemas, direitos, deveres e tensões com seus “patrões e clientes” muito singulares e diferentes de outras categorias profissionais, por exemplo, muitas polícias não possuem direito a greve. Na França, ele menciona que os sindicatos são muito plurais, divididos e tensos entre si, mas que, internamente, prestam um apoio jurídico intenso a seus filiados em processos administrativos e, externamente, são relações-públicas da polícia (ou melhor, dos interesses dos policiais) que representam, divulgando informações que normalmente a imprensa convencional não tem acesso e fazendo denúncias de problemas internos e propondo reformas. Estas propostas, por virem de forças sindicais com interesses em pontos diferentes da estrutura organizacional, profissional e institucional, auxiliam grandemente na evolução da polícia como um todo, visto que a polícia reproduz um recorte político de soluções e diretrizes que não é natural, apesar de ser naturalizado, e sendo historicamente localizado é passível de ser transformado continuamente. No momento seguinte, de um modo geral, Monjardet destaca a diferença entre profissionalização e sindicalismo, já que o primeiro, por levar em conta os fatores específicos de um ofício diferente de qualquer outra profissão, une a classe em torno do que há de comum na cultura, na identidade e na missão policial e o segundo, leva em conta justamente o oposto, que a classe é um emprego como outro, com garantias e lutas semelhantes por condições salariais e de trabalho e também destaca o que cada função dentro da estrutura policial deve reivindicar pra si, rachando a classe. Ao contrário de outras profissões que historicamente construíram um saber, depois o sistematizaram e reivindicaram o monopólio da competência em realizá-lo, o caminho da polícia é inverso: primeiro surge histórica e politicamente a necessidade da comunidade e dos governos de manterem a ordem e controlarem o crime em seus territórios através do uso da força e coerção física, depois membros da sociedade são designados para tal função que é legitimada, sendo profissionalizada e tardiamente seus saberes são construídos, sistematizados e transmitidos (começo do século XX). Ainda hoje é defasado este processo em muitos países. Além disso, há o dilema interno entre qual saber é mais importante: o formal, aprendido nas escolas de formação, cursos, capacitações, normalmente valorizado pelo recruta, ou o saber prático, adquirido com a experiência profissional cotidiana e repassado pelo mais antigo. Para Monjardet, esta heterogeneidade de saberes (de modos de aquisição e transmissão) só enfatiza a multiplicidade de personalidades, funções e de “polícias” dentro de uma mesma polícia e que isso não é necessariamente bom ou ruim se cada grupo e policial se qualificar a ponto de todos serem úteis para o todo, até porque a atividade policial é estritamente ligada ao imprevisível, com uma infinita variedade de situações e de possíveis soluções, sendo tão importante a utilização do poder discricionário com competência e responsabilidade. Outro ponto central é a definição da polícia como corporação no mundo todo, mesmo que haja variações importantes em características profissionais, isto é, ela é fechada a regulações externas e suas competências são avaliadas e controladas por seus membros, ainda que haja cooperação com especialistas de outras áreas e com pessoal não-policial na administração, apoio e técnica. Por exemplo, na polícia inglesa a carreira policial admite uma “concorrência interna”, onde qualificação intelectual e técnica definem mais a ocupação de funções que interesses políticos ou alianças internas, diferentemente da polícia francesa ou de polícias outras que apenas consideram a antiguidade e hierarquia. O autor observa que “verdadeiro” trabalho policial não existe em si mesmo, precisa estar calcado numa necessidade. Não há unanimidade nem consenso no debate sobre que função é estritamente policial, nem o uniforme é único. O lugar e o papel da polícia dentro da estrutura de profissões, corporações e instituições nos dá uma base de entendimento, mas quando se amplia a visão para o papel social, histórico e político, todos entrelaçados com diversas práticas sociais, os resultados são infinitos e igualmente relevantes. Segundo o autor, é interessante nortear o debate sobre as tarefas policiais em torno da: natureza (demanda social ou criminal, utilidade, necessidade), do conteúdo (interpretação e compreensão dos objetivos) e da organização (divisão interna de funções e condições para realizá-las). Neste sentido “a polícia apresenta, assim, essa característica de uma profissão da qual nenhuma atividade, tarefa, missão se beneficia do consenso unânime de seus membros, quer se trate do princípio de sua obrigação ou de suas modalidades” (pág. 193). A condição policial é algo imposto à instituição e não simplesmente aceito e está relacionada com sua função essencial de força pública, detentora do monopólio do uso da força. Poucas coisas são tão comuns à atividade policial como o fato de todos serem alvo ou transferirem para si a violência e agressão que foram combater, pois mesmo que o perigo real de morte, agressão ou ameaça seja menor que em muitas outras profissões, a possibilidade de acontecer é cotidiana. Por isso, Monjardet destaca que a única exceção sobre uma função propriamente policial na qual há consenso é o fato dos policiais sempre se unirem para socorrer um colega em perigo. Isto ocorre em todas as profissões que envolvem perigo iminente, mas apenas na polícia ela faz parte da identidade e da moral de grupo, sendo estimulada cotidianamente e gerando orgulho, enfim, esta solidariedade é importante em si mesma, mesmo que concomitantemente existam cisões internas entre uma instituição policial e outra, entre subordinados e superiores, entre serviço administrativo e operacional e etc. Outra perspectiva da condição policial é a necessidade de fiscalização externa sobre o desenvolvimento de suas tarefas, pois uma instituição tão poderosa deve ser controlada para que este poder não se torne exageradamente arbitrário. Tal vigilância, traduzida pelos policiais como desconfiança injusta, que os chateia, gera inconvenientes para a relação entre a polícia e os outros, por exemplo, o outro é visto como um ignorante em assuntos policiais e tal ignorância não pode ser remediada com autoaprendizagem, mas só com a entrada efetiva na corporação e aceitação da doutrina e mesmo assim, só há a possibilidade de estar contra ou a favor da polícia, nunca o meio termo, mesmo porque a polícia tem como traço relevante de sua cultura profissional a suspeição constante (desconfiança reativa à desconfiança social anterior) e a discrição de seus métodos investigativos e estilo de vida “policial” (segredo policial, isolamento social e corporativismo contra propaganda negativa).
Polícia como Profissão: Controlando o Poder Discricionário – Por Daniela Lana
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