A teoria do apego define laços que são formados com as figuras parentais ou seus substitutos e que surgem da necessidade do ser humano sentir-se seguro e protegido.Com o crescimento, a dependência original caminha no sentido da indepentização. A criança desenvolve a autoconfiança necessária para explorar e enfrentar o ambiente e afastar-se progressivamente das figuras de apego iniciais.
Quando essa tendência natural não é satisfeita, pode haver um estancamento do processo, o que resulta em infantilização, ou permanência de sentimentos e comportamentos infantis em fases posteriores da vida. Inicialmente, a criança não desenvolve a curiosidade e bem-estar em conhecer o mundo.O novo tem sempre um significado ameaçador, enquanto ela continua fixada nas antigas referências afetivas.
Na fase adulta, estas referências tanto podem ser mantidas em pai ou mãe, como serem transferidas para outras fontes de satisfação das carências infantis. Estas fontes, por sua vez, despertarão sentimentos ambíguos de dependência e ressentimento, pois estarão somadas a antiga necessidade de apego e a sensação de que essa necessidade não foi satisfeita.Como resultante, estará formado uma pessoa dependente, imatura, insegura e que não assume o seu papel adulto perante o mundo. Seus relacionamentos interpessoais serão caóticos e sempre haverá uma demanda que o outro jamais poderá corresponder.
Exerce sobre pessoas vulneráveis uma tirania sutil, com o objetivo de levá-las a retroalimentar essa infantilização. Faz birra , utiliza formas infantis de manutenção do poder. Como crises de choro, chantagens várias, habilidade em despertar culpa ou pena, sedução, todas as armas que estivarem disponíveis para submeter o outro e que chegam, às vezes, às raias de uma verdadeira arte, pois sabe também aparentar o encanto de uma criança.
Capta com facilidade os pontos vulneráveis do outro e, quando percebe que uma certa forma de agir atingiu o seu objetivo, tenderá a repetir e aperfeiçoar indefinidamente esse comportamento, pois qualquer alteração nesta rotina o levará aos mesmos sentimentos de insegurança, perda de controle e abandono que sentiu na infância. Da mesma forma que é dócil quando consegue impor as suas vontades, cria verdadeiras tempestades quando contrariada. Desenvolve muita habilidade em ameaçar com as mesmas armas que a amedronta: a rejeição.
O OUTO LADO DA MOEDA
Como as relações são bilaterais, existe a contrapartida: o outro acolherá aquele relacionamento, também, por razões inconscientes. Obterá a ilusão de poder, de ser indispensável e de que não perderá jamais a companhia de quem se demonstra tão frágil e dependente. Assim, poderá exercer uma tirania própria com aquela criatura “boazinha” e submissa. Ao mesmo tempo, poderá exigir obediência como pagamento da própria atitude “bondosa”, e pelas repetidas e incontáveis renúncias.
Este par simbiótico pode ser formado tanto por pais e filhos quanto por amigos “inseparáveis” ou, muito freqüentemente, por relações amorosas. Em qualquer um desses casos, existem as características de fechamento, cobranças e insatisfação permanentes.
Nesta bilateralidade e complementação, quem consegue reagir a alguém tão “bom” sem amargar profundos sentimentos de culpa? O mundo exterior freqüentemente é uma projeção do mundo interior. Vemos então duas pessoas que se conhecem sem se conhecerem, por mais que convivam, pois cada uma estará simbolizando uma mistura de figuras do próprio passado e quererá que a outra ao mesmo tempo reviva como resolva os seus traumas guardados.
A essa altura, já não se sabe mais quem é um ou outro, quem precisa ou depende mais de quem. Os papéis de dominador e dominado se revezam. Existe a sensação, para os dois, de que o outro jamais lhe faltará. As necessidades inconscientes satisfeitas, de ambas as partes, poderão perpetuar uma relação tão forte e difícil de romper quanto uma relação simbiótica mãe-bebê.
Iniciativas de cooperação assumem uma forma própria e distorcida, pois não são motivadas pelo desejo de participar e dividir e sim de manter um jogo que existe enquanto possa durar o que o que o determina, ou seja, o medo da perda e suas decorrências. “Coopero com o que você quer fazer desde que seja o que eu quero”.
Confidências trocadas podem ser transformadas em verdadeiras confissões de culpa e serem usadas como armas para criticar, condenar e torturar. O princípio é “tudo o que você disser pode ser usado contra você. Cale-se, então”.
Somatizações são maneiras constantes de falar o não dito, de reviver o que foi experimentado em uma época pré-verbal de desenvolvimento. Estas somatizações, por sua vez, são usadas também para pressionar e culpar o outro.
Estará plantado um relacionamento que tem uma moeda de troca, um ponto de honra: nenhum dos dois pode mudar ou crescer. A mudança é uma ameaça para ambos e qualquer tentativa neste sentido será punida com o risco que ambos temem: a rejeição, a perda.
A aversão à mudança não atinge apenas a relação afetiva, mas compromete outras áreas. Ambos podem produzir muito menos intelectual e financeiramente, ter um crescimento profissional muito aquém das potencialidades, manter relações de amizade raras, pobres e regredidas.
Costumam acalentar ilusões que os tornam ainda mais fechados um no outro. São ilusões de perfeição, de relacionamento perfeito e eterno.
O PARAISO PERDIDO
A saída desse estado pode dar-se de várias maneiras. A mais comum ocorre quando um dos dois deixa de corresponder às expectativas do outro (de posse, dependência e controle).
Como impera a idéia de perfeição, as falhas humanas não são permitidas. Aquele que “erra” deixa de ser confiável, pois não cumpre mais o “pacto”. Passa a constituir uma ameaça, não externa, mas interna, que precisa também ser eliminada a qualquer custo: ou garantindo a volta ao estado anterior ou provocando uma dissonância tão insuportável que o vínculo tem que ser rompido. Não sem antes terem sido tentadas todas as formas antigas, e algumas atualizadas, de imposição.
Toda vez que ocorre um retorno à forma anterior de relacionamento ( como através de uma reconciliação após uma briga ), ele vem acrescido de novas mágoas e desconfianças que não são expressas, pois significariam novos riscos de perda. Assim, esses ressentimentos são guardados no mesmo inconsciente que guarda as crises e medos do passado e voltarão como mais medos e crises.
Novas formas de agir e de reagir a novas circunstâncias revelarão estruturas de funcionamento intactas, onde as vivências recentes vão apenas acrescentando modos atualizados, às vezes mais eficazes, de expressar as mesmas coisas.
O medo do novo mantém esse par. Externamente, obedece-se a uma “lei de silêncio” particular, onde só as superficialidades podem ser faladas. Esta lei pode sobreviver no tempo enquanto durar a vida dos dois, pois qualquer sofrimento é menor do que a hipótese de solidão.
Por vezes, porém, a ruptura ocorre. Explode a panela de pressão, com todos os riscos e conseqüências, que vão desde ameaças até a execução dessas ameaças. O que desencadeia esta explosão, quando tanto já foi tolerado e reprimido, pode ser a emergência do terceiro, como o pai que quebra o vínculo mãe filho na infância. Este terceiro está agora materializado na figura de um novo par para um dos dois envolvidos na relação.
Como a fase adulta vem trazendo as mesmas emoções infantis, mas diferentes condições físicas de expressá-las, os ódios que na fase do Édipo foram vividas na fantasia podem ser atualizados também de forma diversa. Encontramos assim as agressões descontroladas, tentativas ou execução de suicídio ou assassinato, além das costumeiras brigas e chantagens.
Colocam-se, então, os questionamentos: a infantilização é irremediável? Se não, como sair dela?
AMADURECER , COMO E QUANDO
O estado de infantilização pode ser superado de forma espontânea. Por exemplo, quando um dos componentes da díade consegue amadurecer, talvez por circunstâncias inesperadas. Pode surgir através de um afastamento inevitável, onde um novo ambiente e novas companhias despertam um adormecido desejo de individualização. Tal qual uma semente, este desejo vai crescendo e tomando forma, tornando-se maior que as culpas, medos e jogos que acompanham o processo de libertação.
A Psicoterapia, ainda que freqüentemente invadida por resistências, é outra forma de alcançar o amadurecimento. Quando a terapia é individual, soa para o que se sente excluído do processo terapêutico como uma quebra de pacto. Este fato é sentido como traição e ameaça, e contra a terapia são dirigidos os ataques e pressões que podem surtir maior ou menor efeito.
Mesmo quando o par busca a terapia conjunta, às vezes o faz motivado pelo desejo inconsciente de conservar as formas antigas de relação, ameaçadas por alguma circunstância, que pode ser o desejo de mudança de um dos dois. À medida que a terapia se desenvolve, o jogo também entra em funcionamento e aquele que não quer mudar passa a atacar a terapia. A resistência não é à terapia, mas à mudança. Neste momento, é importante considerar o aspecto contratransferencial da relação terapêutica.
Na medida em que as raízes da infantilização são encontradas e trabalhadas em terapia, novas saídas e novos caminhos a serem percorridos na vida são descobertos.
Vemos uma constância nas hipóteses citadas: a saída do estado de infantilização é sempre um processo individual. O parceiro tenderá a desenvolver todas as formas ao seu dispor para interromper o processo e recuperar o domínio. Caso não obtenha sucesso no que pretende, restam-lhe as soluções, após muito conflito, de formar outro par que faça o mesmo jogo do anterior ou amadurecer também e descobrir um caminho paralelo, onde possam crescer juntos, um respeitando o espaço do outro.
Psicóloga Simone Mello Suruagy


Fonte: http://www.psique.med.br/content/index.php?option=com_content&view=article&id=234:infantilizacao&catid=56:estudosdosrelacionamentos&Itemid=80